Daniely Silva

Até já, candanga

Daniely Silva -
Tempo de leitura: 26 minutos. Viagem política urbanidades


Vista para o Eixo Monumental de Brasília. Pedestres caminham enrolados em bandeira nacional e duas ambulâncias transitam.

Inté já, Candanga

À cidade que é maquete
Foi a visita de repente
Só pra ver o presidente
Que o coração nos derrete

Até logo mais, Candanga
Não mereci o seu Planalto
Tanto caminhei por alto
Pelo asfalto que me zanga

Noite fria, tarde escaldante
Enfrentando o seu Cerrado,
saí de peito amarrado

Foi u’a jornada fatigante
Mas presenciar valeu a pena
A democrática cena

11 de fevereiro de 2023

Até logo, Brasília, vou morrer de saudade

Uma maquete feita para a diversão de gigantes. Caminhar ali, para um pedestre, é como para uma formiga se aventurar pelas ruas grandiosas de uma cidade qualquer. Foi assim que me senti na minha primeira ida a Brasília, para comparecer à posse presidencial de 2023.

Sempre fora crítica do modelo rodoviarista da Capital Federal, ao mesmo tempo em que sempre a considerei uma joia da arquitetura modernista. Só que, presencialmente, a hostilidade ao pedestre é muito pior que parece nas discussões urbanísticas, é como se uma cidade falasse e, ao se dirigir à pedestre, dissesse o tempo todo:

— Você não é bem-vinda aqui! Cai fora!

Chamar Brasília de cidade é até generosidade, já que só consigo encará-la como maquete. Uma maquete dela mesma, mas não em tamanho humano: é algo muito mais inflado que isso, do tamanho do ego de quem a construiu.

Por isso um plano-piloto: uma homenagem ao único que consegue contemplar sua beleza por inteiro, o piloto de uma aeronave. Talvez os pássaros do Parque da Cidade Sarah Kubitschek também consigam, mas devem estar ocupados com outras coisas. Eu tentei admirar, mas minhas pernas são curtas demais para alcançar a dimensão urbana e meus olhos limitados demais para alcançar o fim do horizonte do Distrito Federal.

Diante de toda essa agorafobia, não me rendo ao automóvel. Em minha próxima ida ao Planalto Central, preciso visitar as cidades-satélite — nome tão indesejado pelas pelos planejadores tecnocratas como o foi a própria existência delas, mas que são o que o Plano Piloto não é: cidades, de fato.

Mas enquanto essa visita não acontece, aconchego em minha memória a lembrança do local mais humano e "mais cidade" em que estive em Brasília: a Rodoviária. Estação de metrô, comércio informal, pedintes e o formigueiro humano cabível a metrópoles. Só que minha memória gustativa se soma à lembrança positiva da Rodoviária de Brasília, porque foi lá onde uma marmita tirou a foma de um dia cansativo.

Uma marmita. Palavra simples, mas especial, opis é algo difícil de encontrar numa maquete setorizada e esvaziada do elemento humano. E, não só pela raridade, mas também pela jornada exaustiva na Praça dos Três Poderes para acompanhar a posse. Arroz e feijão. Frango Frito. Ovo. Raízes refogadas. A comida da redenção, o jantar que finda a exaustão.

E que exaustão. Minha curta estadia em Brasília teve suas peripécias até que eu chegasse à marmita sagrada, passando pela privação de sono e pelo racionamento de água e de comida.

Já posso começar contanto que o acontecimento da ida ao DF passou por idas e vindas. Na tarde do segundo turno das eleições, e em outubro, acabei não participando da Grande Festa da Democracia na Avenida Paulista, tendo ficado no Vale Anhangabaú por decisão do grupo. A partir daí, determinei a mim mesma que viraria o ano em Brasília para a cerimônia de posse — não como promessa, mas como uma convicção.

Já em dezembro, comecei a procurar caravanas, já que as passagens e a hospedagem estavam pela hora da morte. Nada de encontrar, nem mesmo os militantes mais ávidos tinham informação alguma que pudesse me ajudar, já que a maioria preferiria acompanhar de casa, por questão de segurança.

Eis que, pouco antes do Natal, recebo uma lista de inscrição do diretório do Partido dos Trabalhadores de Caieiras. Relutei, mas me entusiasmei. Falei com algumas pessoas próximas para verificar interesse, mas, mesmo depois de tanto falar em ir para Brasília na posse, ninguém quis pôr o nome na lista.

Tudo bem, estarei na companhia dos companheiros do partido. Fui conhecendo-os através do grupo no WhatsApp. O entusiasmo foi crescendo, apesar da insegurança, até o momento em que já não podia imaginar um Ano Novo longe de Brasília.

Mas a vida vem com uma paulada para frustrar os planos. Às vésperas da viagem, pouco antes do Natal, o coordenador nos avisa que um corte acarretou o cancelamento dos três ônibus que que formariam o comboio partindo de Francisco Morato, Campo Limpo Paulista e Jundiaí. Fiquei desolada, sem chão. Estava no ônibus urbano quando tive a fatídica notícia.

Não restava alternativa a não ser me resignar estoicamente e procurar outro canto para passar a Virada. Mas a vida surpreende novamente e, quando já reunia partidários para virar o ano na Paulista, surge, intempestivamente, uma reminiscência de duas vagas em outra caravana, do diretório de Pirituba, saindo do bairro de Taipas.

— Tô indo pro Planalto Central!, não hesitei em enviar meus dados para agarrar com força aquela oportunidade.

Desta vez, tudo ocorreu nos conformes; pelo menos até então.

As primeiras ocorrências foram na estrada. Após mais de longas 16 horas de viagem, o motorista se apressava para chegar à Capital Federal antes da meia-noite para comemorar a Virada do Ano antes da virada democrática. Mas desconhecíamos o que as pistas guardavam para nós: numa parada de caminhoneiros em Goiás, tomamos ciência do apedrejamento de ônibus em Vitória da Conquista, ou vindo de lá.

Pela providência da Democracia, não passamos por nada disso, só que a parada que seria de meia-hora foi reduzida a 5 minutos e, mesmo sem o apedrejamento, tivemos que suportar algo igualmente ruim: gente dizendo que estava sem tomar banho "desde o ano passado", na melhor reprise do tio do pavê.

Chegando ao Plano-Piloto, às vésperas da meia-noite, reuni-me à parte do grupo que se apressou para ir à Torre de TV para acompanhar o espetáculo da Virada. Perdemos a queima de fogos oculta pelo sem-fim do Parque da Cidade e, após quase uma hora desbravando a selva automobilística e hostil ao pedestre, entre o medo do assalto e do atropelamento, chegamos ao concerto ouvindo as palavras de despedida da cantora, enquanto a multidão lhe virava as costas e deixava o espaço em manada.

Frustrante, mas valeu a pena percorrer as curvas de Lúcio Costa. Agora, só teríamos que refazer o trajeto para, ao amanhecer, tentar um lugar aos braços da Praça dos Três Poderes.

E lá se vai, mais uma vez, percorrer todo o caminho de volta. Desta vez, tentamos cortar caminho através do parque, mas, às duas da manhã, sem conhecer o caminho, era pedir para se perder. E foi exatamente o que aconteceu. Ainda encontramos um bando que retornava para o mesmo alojamento no pavilhão, mas que também estava perdido e sumiu entre os bosques depois de nos avisar sobre um buraco no caminho.

Até tropecei em algo, mas, como caminhávamos na escuridão, só fomos ter noção da dimensão do buraco ao refazer o caminho na manhã seguinte: ele engoliria tranquilamente umas três pessoas, estando a três passos à direita da trilha, escondido sob uma frondosa árvore que formava um portal.

Bom saber que passamos ilesos! Agora restava enfrentar a posse. Já de manhã, havendo ultrapassado o tal buraco, caminhamos mais de mais de uma hora e meia até o Eixo Monumental. Percebemos o aumento gradual da temperatura após uma noite fria, que acompanhava o calor humano das multidões que se aproximavam da Esplanada dos Ministérios.

E que calor humano! A fila saía da esplanada e quase chegava à rodoviária. Para quem nunca foi à cidade, chuto que a multidão enfileirada em linha reta percorreria quase três quilômetros.

Quantos de nós adentraríamos a Praça dos Três Poderes para acompanhar de perto o dia mais importante da Nova República ainda era um número desconhecido. Uns falavam em 15 mil, outros diziam 30 e, depois, supostamente, foram liberados mais 5 e, afinal, foram cerca de 40 mil pessoas.

40 mil pessoas espremidas num perrengue inumano. Mas isso fica pra depois, porque ainda nem chegamos à Esplanada.

Todos naquela multidão alinhada, independentemente se iam para o Festival do Futuro ou para a cerimônia de posse, olhavam para um mesmo ponto: a democracia. Compartilhávamos protetor solar, víamos a passagem de cortejos dos povos indígenas, movimentos sociais e da comunidade chinesa. O que importava é que estávamos juntos — até então.

Num dado momento, surgiu que nos separássemos em fila de homem de de mulher. Surgiu então a fila dupla, mas ambas ainda pareciam mistas, já que as mulheres não queriam se separar de seus grupos e ignoravam o boato.

Só que não era um boato.

Na primeira barreira, na altura do Ministério da Economia, um agente já separava as filas para a revista, que estaria cerca de 1,5 quilômetro adiante. Aí já começava um caos: a população feminina é mais numerosa e surgiu um imenso contingente de mulheres para a fila da direita. Além disso, num geral, a revista masculina é mais rápida porque eles costumam carregar menos coisas. Como resultado, meus companheiros entraram na área cercada muito antes de mim. E se passaram vinte minutos, meia-hora... E a fila não andava. Não disseram que Lula ia abolir o gênero e deixar tudo unissex? Será que ele tá sabendo disso?

Fiz até amizades na fila: de um lado uma gaúcho, do outro uma potiguar. Eis que meu telefone começa a tocar para interromper a conversa.

— Onde você tá?!, era o companheiro cujo nome já nem me lembro, de alcunha de Homem da Cobra. Tanto falava, que na ligação o disparo de verbos não era menos frenético que pessoalmente.

— Tô na fila ainda, quase chegando na altura da bandeira da CUT. Ou é do PSTU. — sabe-se lá onde estava, mas o que importa é que estava bem longe e ainda teríamos outras filas a enfrentar até a Praça dos Três Poderes.

Ele parecia falar com alguém ao outro lado da linha. Quando falava, em ritmo acelerado, já não sabia se falava comigo ou com outra pessoa. Mas, de repente, ele me dizia que fosse na direção da barreira da revista.

— Não desliga, não desliga! Corre! — eu já abandonara a fila e só via o destino à frente, ainda distante — Continua na linha! Pra direita, à direita!

Eu, que corria ao lado esquerdo da fila, cruzei-a rapidamente, como se não houvesse amanhã, sem parar de correr. A fila foi ficando para trás, mas ainda havia muito à frente. Quando me dei conta, já estava diante da barreira, com vários “robocops” em armaduras federais. Perguntava ao companheiro Homem da Cobra onde ao telefone onde ele estava e, quando olho pra frente, está diante de mim; ao me ver, já acenou e desligou. Fui até ele, que me apontou para um federal e disse que falasse com ele, mas o dito cujo estava atendendo outras essoas. Outro federal, então, chamou-me. Mostrei-lhe minha sacola de pano, expus a pochete anti-furto onde estava o celular, a qual ele deu uma discreta verificada. Liberou-me. Eu estava dentro. Estava agora na Esplanada dos Ministérios.

Agora, só queria entender tudo o que acontecera. Descobri que eu havia entrado pelo acesso da imprensa, que minha corrida havia sido acompanhada por um coro de gritos por estar furando fila e que o companheiro chegara ao federal dizendo:

— Mermão, eu tô com uma mina lá na fila, ela tem que entrar agora! Se eu trouxar ela até aqui você passa?

Agora, já dentro, graças à benevolência de um agente e à cara de pau do nosso companheiro, restava nos reunirmos aos outros. Um tinha a fidedigna aparência de Karl Marx, enquanto o outro tinha má dicção, mas, tendo em vista muito do que falava, era melhor que não entendêssemos o que dissesse. Ambos saíram da fila, mesmo depois que o Homem da Cobra ter-lhes pedido que ficassem. Só que já mal existia fila, tudo se misturava na pista de oito faixas lindeira aos ministérios.

Hora de correr. Novamente sob as ordem do Homem da Cobra, só que agora com dois homens cansados de meia-idade para acompanhar. Eu não sabia se corria mais rápido para acompanhar o Tagarela ou se diminuía o passo para esperar os outros dois. Mas, aos tropeços, seguimos correndo até atingir mais uma barreira de revista. Muita gente se queixava dos fura-filas, mas o fato é que não havia mais fila nessa etapa, senão um salve-se quem puder.

Só que uma nova fila se formou, ou melhor, uma nova muvuca se afunilou, diante da nova barreira de revista. À esquerda, detectores de metal e, à direita, revistas manuais. Que confusão! O Tagarela, que era ligeiro, foi o primeiro a passar; atrás, eu, que quando chegava ao detector de metais, fui chamada à revista manual para agilizar. Ambas eram, na verdade, uma revista quase que simbólica, porque um mal intencionado conseguiria passar com muita coisa indevida ali; mas ninguém fez isso, seja pela inteligência da Polícia Federal, pela presença da militância ou pelo mero bom senso.

Reunida novamente com o Homem da Cobra, pomo-nos a procurar os outros. O Karl Marx brasileiro era um verdadeiro lorde: deixava que todos passassem à sua frente; o outro, enquanto isso, resignava-se a permanecer atrás dele. Ainda tínhamos que ouvir o chefe da segurança presidencial, um federal de camisa xadrez, óculos escuros e boa aparência, que todos deveriam seguir, que ninguém ficasse parado pela área. Alguns ainda se atreviam a discutir, mas ele se limitava a dizer o óbvio: que estava fazendo o seu trabalho.

Ao menos ele não se dirigiu a nós, que aguardávamos um pouco mais à frente. Não tardou muito para que nossos companheiros aparecessem, quando nos surgiu uma sensação de alívio: a Praça dos Três Poderes estava finalmente acessível. Até nos demos ao luxo de parar para fazer algumas fotos. Era um momento novamente de alegria, sem disputas e sem filas, todos juntos. Só aceleramos o passo quando, de fato, atingimos a praça, para tentar pegar um bom lugar. A imensidão de Brasília fazia com que a multidão de vermelho se assemelhasse a uma colônia de saúvas enfurecidas. Um cortejo puxava, em direção aos Três Poderes:

— Lula, guerreiro – do povo brasileiro! Lula, guerreiro – do povo brasileiro!

Não pude desperdiçar a oportunidade de puxar “Dilma, guerreira – do povo brasileiro!”, o que acabei fazendo várias vezes, nem sempre com o sucesso de fazer com que a multidão me acompanhasse. Mas como é satisfatório guiar um coro de vozes! A gente se sente como uma profetisa arrastando uma multidão.

Passado o cortejo, recomeça a corrida. Os dois para trás, Tagarela à frente eu no meio. Encontramos um cercado à direita da plataforma da imprensa. Lá, entramos numa área ainda não muito cheia. Nem chegavam as 10 da manhã e a posse seria só às 4 da tarde. Ainda tinha muito chão e, sobre o chão, haveria muito Sol.

O dia durou muito e demorou a passar, mas, ao cabo, parecia ter durado um instante. Parece que tanta coisa aconteceu. É como se houvesse começado quando nos achegamos ao cercado. De todo modo, nesse dia precisaríamos ser guerreiros, como dizem que Lula e Dilma o são. Chegando ao cercado, um grupo já nos olhou com agressividade ofídica, como se quiséssemos usurpar um lugar que é seu direito natural. Talvez não falemos do grupo, mas de uma senhora em específico, do movimento de moradia da Zona Leste de São Paulo. É importante lembrar-se bem dessa personagem, porque aprontou muito naquela tarde. Vou chamá-la Guerreira da Leste. No cercado, ela foi a primeira a nos encarar e reafirmar que estava ali desde cedo, que ninguém lhe tomaria o lugar. O Homem da Cobra, com seu gingado, apressou-se em dizer que não queríamos nos encostar à grade, que ficaríamos atrás e poderíamos até ajudar na contenção. Ela abaixou um pouco a bola e, olhando-o melhor:

— Eu te conheço.

E conhecia mesmo. O Homem da Cobra, com sua cara-de-pau, aproveitou para entrar na onda e reconhecê-la. Nem parece que eles se conheciam de quando ela o puxou pela gola e o ameaçou, numa ocasião em São Paulo. Ele contou essa história várias vezes, mas não consegui até hoje entender o contexto da briga. O que importa é que, inesperadamente, a Guerreira da Leste era agora amigável: não só nos recebeu na área reservada em frente ao parlatório, como também nos ofereceu esfihas e salgados, além de compartilharmos filtro solar e muitos momentos daquele dia. Quando a fome da população apertou, dela vieram salgados que passaram de mão em mão — talvez a próxima pandemia tenha começado ali.

O coração amoleceu, mas o territorialismo continuou bem duro. Num dado momento, duas moças chegaram de fininho até encostarem-se à grade. Pois o que a Guerreira da Leste lhes gritou e xingou não pode ser escrito. Ainda chamou o nosso Homem da Cobra, dizendo que ele era bom em resolver as coisas. Era como se, ao nos aproximarmos, tivéssemos feito um pacto de proteção mútua. Mas não foi preciso que nosso Tagarela infringisse a Maria da Penha, porque a imponente corpulência da Guerreira da Leste foram mais que suficientes para que as moças se afastassem. A partir daí, mesmo que a multidão continuasse crescendo, ninguém ousaria enfrentar aquela mulher.

Estávamos em paz no nosso canto. Observamos algumas pessoas pulando para dentro do cercado; haviam trancado o local. Acontece que todas as fontes de água ficavam na praça, ou seja, fora da nossa área gradeada. Quem saiu, precisava voltar, e quem estava fora, também queria entrar. Pouco deopois que trancaram, várias pessoas invadiam, ultrapassando o guardirreis. Uma delas se destacou: a moça estava com o corpo divido, metade dentro e metade fora, quando um guarda a abordou; ocorreu então um diálogo hilário, pois ele queria que ela voltasse, enquanto ela argumentava que estava mais pra dentro do que pra fora. Foi o que aconteceu, ela o ignorou e voltou para o cercado — naquelas condições, ele nem tinha muito o que dizer.

Ainda liberaram a circulação, mas ficamos um bom tempo trancafiados. A situação era crítica, porque dentro da nossa área não havia sequer um bebedouro e só havia dois banheiros químicos para, quem sabe, 5 mil pessoas. Alguns do nosso grupo se arriscaram para buscar água e tentar voltar, mas as filas também eram quilométricas. Enquanto isso, preocupei-me em ir à fila do banheiro; ainda não precisava, mas tinha certeza que depois não poderia sair, porque o espaço lotava cada vez mais. Fiquei mais de duas horas e meia na fila do banheiro. Sob aquele Sol do Cerrado, talvez quando chegasse lá já nem precisasse, pois teria perdido todo o líquido por transpiração. Nesse tempo, fiz amizades e vi cada cena inusitada, enquanto a sede só aumentava.

Quem me acompanhou por mais tempo foi uma senhora paraibana, logo atrás de mim na fila. Num dado momento, um senhor se queixava que aquela área cercada era reservada às Pessoas com Deficiência e que, segundo ele, todos a haviam invadido. A senhora se irritou, dizendo que não invadira nada, já que o guarda foi quem a convidou para entrar; dizia ela que ali era, na verdade, o camarote do Nordeste. Realmente, não havia nenhuma sinalização referente às PcD, mas, se de fato o era, foi uma falha grave da organização do evento, não da população, esta que, naquelas condições, comportava-se como uma multidão se porta.

Ainda na fila, uma conhecida saiu de seu lugar ao me ver para me abraçar calorosamente. Enquanto a abraçava, esforçava-me insanamente para me lembrar de onde a conhecia. Conversamos um bocado, mas até hoje ainda tento lembrar de onde a conheço. Talvez deva procurá-la nas redes. Ela então voltou ao seu lugar e ficamos de “marcar alguma coisa um dia desses”.

Enquanto isso, a fila não andava. A do masculino, como na fila da Esplanada, fluía, ainda que a passos lentos, mas a feminina era estática como rocha ígnea. Já comentávamos que, se alguém dizia que Lula ia criar o banheiro unissex, a hora era agora.

Começaram, então, a apontar os fura-fila. Surgiu, espontaneamente, uma comissão fiscalizadora. Funcionou, pois a fila começou a andar aos gritos de “Respeita a fila!” e até gritos limitando o tipo de necessidade fisiológica. Como toda comissão, foram cometidos excessos. Foi determinado arbitrariamente que não haveria atendimento preferencial, contrariando lei federal vigente. Dentre as preferenciais barradas, estava uma senhora cocha que me apertou o coração, porque ela se dirigia ao final da fila aos prantos. Só que houve a intervenção de um haitiano na outra fila, que a abraçou e a levou de volta, dirigindo-se às fiscais:

— Vocês não têm coração, gente? Isso é desumano, tadinha. Aqui tá todo mundo junto!

Afinal, haviam dito que fosse ao banheiro dos homens, mas consentiram que usasse o feminino. Muito tempo depois, chegou a minha vez, mas a situação era tão asquerosa que todas saíam pior do que haviam entrado. Mas, tudo em ordem, depois de um banho de álcool em gel aguentaria o resto do dia.

Era hora de voltar para o meu pessoal, mas o mundo não era o mesmo depois de duas horas de meia. Quase não volto, porque alguns territorialistas tentaram me barrar de chegar perto da grade, até que alguns me reconheceram e pude entrar. A pessoa que fora buscar água conseguira, mas a água já tinha acabado. Pensei que talvez fosse melhor ter ficado na fila da água, porque a sede já estava descapacitante.

Como o mundo já era outro depois do tempo que se passou, perdi não só a água, mas também a briga com um velho fascista e uma suspeita de furgão-bomba. O furgão se tratava de um veículo branco parado no Planalto, o qual ninguém sabia nada a respeito. Vários agentes da equipe de segurança do palácio a rodaram até a chegada do esquadrão anti-bombas da Polícia Federal, com seus cães farejadores e equipamentos cinematográficos. Nada detectado. Veio o guincho e a empilhadeira pra levá-la, enquanto o Detran aplicava multas até a oitava geração. Acontece que o guincho e a empilhadeira pareciam ter saído direto d’Os Trapalhões: pararam abaixo do meio-fio e, logicamente, não conseguiram alcançar o veículo. Uma vergonha dessas diante de uma multidão de 40 mil pessoas, a qual não perdoava o deboche. Nossos Karl Marx era um dos mais ativos nos gritos, dando orientações jocosas e óbvias . Nalgum momento, acertaram e, quando voltei da fila do banheiro químico já não estava mais lá o furgão.

O velho fascista se tratava de um idoso branco que se encostou à grade, acompanhado de um rapaz negro de uns 40 anos. O velho, com óculos de Sol e parado, identificava-se como Federal e dizia que não sairía dali. É claro que a Guerreira da Leste e sua turma não deixariam barato, mas quem o enfrentou foi o nosso icônico Homem da Cobra. Ele logo viu que o alegado federal portava chinelos, sob pernas inchadas de erisipela e, pior ainda: o suposto distintivo era, na verdade, o crachá de um D.A da Zona Leste de São Paulo. Os olhos que se encontravam eram como fuzis, não havia perdão.

— Você tá se passando por verme pra tomar o lugar das mina e dos preto, seu vacilão?

Sobrou até para o rapaz que o acompanhava e, o idoso, vendo que não ia ter jeito, afastou-se e ficou na moral num outro canto. O mais estranho foi que, quando Lula apareceu no Rolls-Royce, ele simplesmente foi embora. Atitudes suspeitas do começo ao fim; como alguém que briga tanto por um lugar vai embora no momento mais esperado por todos?

Tranquilizados os conflitos, o evento começaria em breve com o cortejo dos Chefes de Estado, embaixadores, cônsules e outros representantes das nações. Começava, também, a grande tribulação da sede, da fome e a desidratação. Como em Números, capítulo 20, versículo 2 ao 12:

“Senhor Presidente, por que tiraste teu povo do litoral para morrer de sede no Cerrado?”

“Pois ide àquela mangueira, furai-a com vossos brincos e brotará água do concreto. Mas, porque duvidasteis de mim, não me verais subir a rampa”.

Sem saber se culpávamos Janja ou o governador bolsonarista do DF, havia dois furgões com quatro torneiras para uma multidão de 40 mil. A solução foi furar as mangueiras que levavam água aos galões nos veículos; deposi do primeiro furo, vieram muitos outros. A ideia veio depois que viram um pobre coitado tentando encher a garrafa com a goteira que caía a cada dez segundos de uma mangueira suspensa. Nosso Karl Marx, nesse momento, tornou-se Moisés, aquele que trouxe água a toda a população.

Aí veio água, mas só podíamos dar umas goladas, porque era muito compartilhada. Acho que nunca tinha passado tanta sede e, a esta altura, já estava só de sutiã para suportar o calor. Nem havia mais suor no crpo. Ao menos estava num ambiente de respeito e podia ficar tranquila que não haveria assédio ou importunação.

Foi em meio a essa tribulação, sob a sombra de uma cabana de bandeiras segurada por tantas mãos, que começaram a passar os salgados de mãos em mãos. Em meio a esse caos, uma senhora deitada ao chão, ora sentada, ora se queixando. Ela dizia que não se sentia bem, ao que respondiam que ela fosse para casa ou que nem tivesse saído de lá — achei que foram falas bem etaristas, mas ela ficou o dia todo se queixando de tudo e de todos.

Sem aguentar a idosa nem o calor, imploramos por água. Queríamos água para beber, mas vieram com o jato d’água do caminhão de bombeiros. O primeiro jato foi um alívio, realmente refrescante, mas do segundo até o quinto não aguentávamos mais: estávamos ensopados e com frio.

O que aliviava essa tribulação era quando passavam as viaturas da Polícia Rodoviária Federal. A população os recebia com vaias e com o coro “Você pagou com traição – a quem sempre lhe deu a mão”. Enquanto estive na fila do banheiro, a senhora paraibana comentou que essa atitude tendia ao bolsonarismo, o que ela também atribuía ao momento em que uma repórter da Jovem Pan, ao subir na área da imprensa, foi recebida aos gritos de “Fora Jovem Pan!”. A princípio, até gritara junto, mas, no segundo grito, refleti que isso era coisa de fascista e abandonei o coro.

Quem se divertia com as vaias à PRF era a Polícia Militar do Distrito Federal, que sempre ria. Mas, se fosse depois do 8 de janeiro de 2023, eles teriam a própria vergonha para chamar de sua.

A vaia que tive que intervir foi quando começavam a chegar os convidados e autoridades ao Planalto.

— Olha lá o Padre Kelmon!

O grito que puxou as vaias não se atentou que se tratava de um Irmão dos Frades Menores. Orgulhei-me de conseguir conter a multidão ao dizer que era um franciscano, que não o vaiassem — se não conseguisse, a outra alternativa era apanhar. Ainda dei tchau e fiz coração com as mãos para o frei, que nos retribuiu e, em seguida, tive que relembrar a todos do encontro de Lula com os franciscanos, quando recebeu deles a benção; enquanto isso, Bolsonaro tentava contornar o escândalo da relação com a Maçonaria. Ainda consegui outro ponto com a fé católica quando, ao pediram a benção de Deus num discurso, puxei da multidão:

— Viva Nossa Senhora Aparecida!

— Vivaaaa!

Ainda tivemos um drone suspeito sobre nós, que foi rapidamente interceptado e abatido pela tropa de elite da Polícia Federal, no mesmo momento em que muita gente percebeu que a Internet não funcionava, mesmo que com o sinal do celular cheio. Mesmo com a robusta segurança, num dado momento passou por nós, em frente ao Palácio do Planalto, um ônibus não oficial com pessoas desconhecidas em seu interior; pergunto-me até hoje se esse ônibus era urbano, um fretado, de artistas ou de loucos.

Enquanto esperávamos ansiosamente a presença de Lula, começamos a cantar para dissipar o tédio e a ansiedade. Ainda tive a oportunidade de cantar meu próprio jingle eleitoral.

Lula com chuchú é o prato alto da estação
Na rampa do Planalto vai subir com Geraldão
A faixa vai vestir
E a miséria vai extinguir
É o poder popular
Na voz de Lula-lá

Dá pra fazer
Acontecer
Geraldo mais Lula
Vamos ver

Do Tietê
Ao Paranoá…

Daí me embaralhei com as versões de minha própria letra, mas o melhor de tudo foi não ter apanhado. Ainda gostaram da musiquinha, pois pensaram se tratar de um escárnio com Alckimin. Daí pra frente, só cantamos o Hino Nacional, duas vezes, quando dos discursos do presidente empossado. Cantamos com a emoção de um povo trabalhador que ovolta ao poder..

Quando Lula apareceu, aí tudo foi muito rápido em nossa percepção. Só não chorei porque a desidratação não me permitiu. Até um dos jovens seguranças diante de nós estava chorando enquanto segurava a grade junto aos outros. Só não sei se chorava de emoção, por causa do Sol ou por causa dos xingamentos que ouvira da Guerreira da Leste.

— Eu quero tirar uma foto do meu Lula! Vim até aqui e ninguém vai me impedir!

Sim, ela ainda pôde aprontar uma última. Acontece que as grades não estavam bem firmadas ao chão, e uma tropa de vigilantes, cobertos pelos federais, se posicionou para segurá-las e conter a multidão, evitando invasões e até pisoteamentos. Só que um deles se posicionou bem no campo de visão da nossa guerreira, que já estava com o celular apontado para registrar a entrada do presidente no carro aberto. Ela intimidou o jovem vigilante e um federal veio conversar, de forma polida e explicativo. Pois ela não abaixou a bola nem para o federal. Se ele não fosse espero para manter a distância segura, teria levado um tapa na cara — e sabe-se lá o que aconteceria em seguida. Ela chegou a propor que invadíssemos o Planalto Federal! Que bom que todos tivemos a lucidez de cortar rapidamente esse tipo de ideia que saía de sua boca.

E, é claro, não houve mudanças no posicionamento da equipe de segurança. Ela ainda esgoelou mesmo após a saída do federal que com ela conversou, mas com o tempo, viu que era sandice e se conteve.

Não sei se ela conseguiu tirar foto do seu Lula, só sei que mal consegui vê-lo, apenas por uma fração de segundo. Quando o Rolls-Royce passou, eram tantos braços erguidos para acenas e, pior, fotografar que só o vi entre frestas de mãos.

Mas essa visão entre frestas, de uma fração de segundo, vai durar a vida inteira em minha memória.

— Boa tarde, presidente Lula!, gritavam os 40 mil.

— Dilma, passa a faixa!, imploravam alguns coros entre as dezenas de milhares, sem imaginar como seria a passagem da faixa.

— Boa tarde, povo brasileiro — disse o pernambucano, o metalúrgico, o Presidente da República, ao subir ao parlatório do Palácio do Planalto pela terceira vez.