22 maio 2024 - Daniely Silva Resenhas
Ler Saramago é, para mim, uma experiência que remete à de ler a brasileira Clarice Lispector: começo com raiva por não entender nada, perdida em divagações; em seguida, começo a entender a trama e, afinal, mergulho de cabeça e me afogo ao terminar a leitura. Nem tudo precisa ser entendido, é o que sempre diz a modernista em suas obras, pois mais importante é sentir. Não sei se o português diz o mesmo, mas tenho impressão semelhante, embora o ache suficientemente menos hermético do que a sua colega brasileira.
Confesso não saber muito sobre ele, à altura da segunda autoria sua a qual leio. Até pouco tempo atrás, tinha a memória de seus comentários sobre as eleições brasileiras de 2022, com ácios comentários contra o ex-presidente Jair Bolsonaro; foi quando soube que ele morrera em 2010: eram falsas memórias.
Seis anos antes de nos mostrar um mundo repentinamente tornado cego, Saramago nos põe a pensar como um simples NÃO, escrito assim mesmo escrito em caixa alta, embora não seja capaz de mudar a história de um país, tem o poder de transformar a vida de um revisor lisboeta.
Só uma ironia muito negra pretenderia fazer crer que alguém é realmente benvindo a este mundo, o que não contradiz a evidência de alguns se acharem bem instados nele. (SARAMAGO, 2003, p. 28)
Raimundo Benvindo da Silva é revisor, nem sempre bem-vindo a este mundo pautado pelas linhas das hierarquias sociais. No decorrer da trama, ele trabalha na revisão da obra técnica Histórica do Cerco de Lisboa, que detalha os acontecimentos de 1147, quando as tropas de Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, avançam, com auxílio dos Cruzados, sobre a Lisboa ainda muçulmana, num dos episódios mais brutais das guerras de Reconquista na Península Ibérica. Na correção do livro, tomado por um impulso primitivo e subversivo, Raimundo inclui um NÃO, ao escrever que os cruzados NÃO ajudaram os portugueses a tomar Lisboa. Ora, a função de um revisor é encontrar erros, não incluí-los; algo de tal gravidade não passaria despercebido para sempre e, se passou batido até a data da impressão das tiragens, é porque depositavam muita confiança no seu trabalho.
Num dado momento, pensamos se tratar de romance de história contrafactual, no melhor estilo de The Man in the High Castle — o que seria do mundo se o Eixo ganhasse a guerra? O que seria de Portugal e da Europa se os cruzados não ajudassem seu primeiro rei na Reconquista?
Uns acreditam que o mundo surgiu depois da grande explosão, outros, que foi quando o Senhor disse que se faça a luz, e Ele viu que a luz era boa, enquanto outros, ainda, pensam que o mundo surgiu após a formação de Portugal. O que será do país sem a ajuda dos Cruzados em 1147 está no centro da narrativa, mas, mais do que uma história contrafactual, o romance é um jantar completa de metalinguagem. Acompanhamos a reescrita da história por Raimundo, um mero revisor tornado escritor, e de que forma isso transforma sua vida.
Aquele NÃO traz à sua vida Maria Sara, a severa nova editora-chefe da redação, aquela que acompanhará de perto o seu trabalho para que não se repitam seus impulsos ao revisar. É claro, certos tipos de ousadia só se permitem acontecer uma vez, porque depois da primeira já não há margem. Só que agora, como escritor, ele terá que rever a história ao reescrevê-la: começa um romance inspirado no seu instinto primitivo de alterar a história num livro técnico. Embora não possa alterar o passado com sua escrita, sua revisão repercute no presente. Porque a escrita pode tudo, ainda que o seu poder se limite ao que achamos dela, tal qual o dinheiro, o qual não tem valor se não lhe dermos valor.
em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura, A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, […] Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever. (SARAMAGO, 2003, p. 12)
A escrita de Saramago deixa dúvida porque, como na língua falada, não há travessões e interrogações. O final de sua história poderia estar no meio do livro porque nossa existência não é marcada por uma conclusão: se acaba para nós, a vida continua sem nós. Os e se na história são tão incertos como os das atitudes que tomamos no presente. Durante a leitura, perguntamo-nos o tempo todo o que será de Lisboa, se se ouvirá nas 5 orações diárias a profissão da fé islâmica ou as latinarias na missa de domingo de manhã. Menos certeza ainda é o que será de Raimundo e Maria Sara, assim como o casal do século XII criado no romance de Raimundo, Mogueime e Ouroana, não tinham certezas sobre o amor, vivendo num mundo sem imprensa e sem telefone.
Sem as certezas por nós esperadas, uma as personagens criadas pela personagem de Saramago implora a Deus para que não morra sem provar o gosto da vida. E que bom que a metalinguagem do modernista lhe permitiu existir para provar desse sabor.