7 jan 2025 - Daniely Silva Resenhas
O Auto da Compadecida 2 é o filme que ninguém pediu, mas todo mundo viu. Vale mais a pena entendê-lo como releitura que como sequência: de fato, ele não trouxe nada de novo, a não ser novos cenários e um novo contexto, mas as piadas são, num geral, as mesmas. E isso não é dizer que não tenha me divertido assistindo ao filme! Vale notar que aqui o drama é bem menos presente que no filme original.
O primeiro filme tinha um aspecto teatral. Não à toa é inspirado na peça mais encenada no Brasil, desde 1954. Mas era, de fato, um filme; agora, o que vemos, é uma peça filmada, que me perdoem os dramaturgos. Muitas cores, cenários montados e um tom idílico que faz com que tudo pareça um sonho de Chicó.
Senti falta de que o filme explorasse melhor os cenários deslumbrantes (e às vezes lúgubre) das Caatingas, como ultimamente tem feito o cinema nacional, vide o recente Mais Pesado é o Céu (2024), também interpretado por Matheus Nachtergaele. Inclusive, houve um diálogo sobre esses cenários entre o Coronel Ernani e a filha, Clarabela, em que, para ela, moça da capital, o sertão é tudo de bom, enquanto para o pai é só desolação. Essa ambiguidade é vista muitas vezes em autores sertanejos, não à toa Rachel de Queiroz, em suas crônicas, se pergunta tantas vezes o porquê de gostar tanto dessa terra seca.
No filme, Taperoá está abandonada por conta de uma seca de seis anos. E, apesar de a trama se passar no meio do sertão, não vemos um elemento onipresente no primeiro filme: o suor. Teatro não precisa ser no ar condicionado! Os anfiteatros medievais, romanos e guarani não me deixam mentir. Mas, olha lá: não estou apontando um erro no filme, isso tudo é uma escolha de direção; posso não achar a melhor opção, mas ela é válida para o que se propõe e funcionou.
Sem dar mais detalhes que possam ser spoiler, a cena do julgamento me decepecionou. Para mim, chega a ser tediosa. Não vou dizer que ela estraga o terceiro ato, porque o que vem depois do julgamento, ainda que não dure muito tempo, ainda surpreende. O que vem depois remete a algo de novo que o filme trás: um detalhe da vida de Chicó que vai fazer toda a diferença no que aconteceu entre um filme e outro e no que vai acontecer daqui pra frente.
Com os cenários montados, transições rápidas e fotografia enevoada, fico com a ideia de que tudo possa ser um sonho na cabeça de Chicó, o nosso contador de histórias favorito. Ariano Suassuna fala sobre o mentiroso que não faz mal a ninguém: aquele que conta uma mentira que eu sei que é mentira, ele sabe que eu sei que é mentira e eu sei que ele sabe que eu sei. Esse é Chicó! Eternizado na figura de Selton Mello. Quem não conhece um Chicó? João Grilo é uma personagem folclórica que remete a Portugal, mas também foi eternizado pela dramaturgia de Ariano e pela interpretação cinematográfica de Matheus Nachtergaele. Isso pra dizer que, como disse, O Auto da Compadecida 2 é um filme que ninguém pediu, mas todo mundo viu. É impossível superar um clássico, mas qual o problema de apelarmos à nostalgia?
Você acha que você não envelheceu não, é?
João Grilo responde a Chicó ao ouvir que está diferente. Ora, os atores envelheceram. Temos um final meio aberto, meio fechado e que não precisa de sequência. Acharia exagero se lançassem O Auto da Compadecida 3, mas com certeza estarei lá para ver, assim como achei desnecessário o segundo filme mas estive lá para vê-lo. A cena do encontro entre as duas personagens, interpretadas por esses dois grandes atores, é de marejar os olhos. Não vou negar um certo estranhamento: ver o brincalhão Chicó na carne de um Selton Mello de aspecto mais cansado é como ver os últimos episódios do Chaves, gravados na década de 1980, em que um Bolaños mais velho já não aguentava correr e pular.
Uma escolha interessante foi a montagem da loja do Seu Arlindo, personagem cativante interpretada por Eduardo Sterblitch. A personagem cumpre um papel entre o que o Padeiro e o Cabo 70 cumpriram no filme original, mas agora com uma rádio local e uma loja que vende aparelhos de rádio, eletrodomésticos e utensílios, tudo isso num crediário que vai endividar a cidade inteira. É uma figura caricata, mas não posso deixar de elogiar a estética da loja: vintage, neon, automóveis antigos e coloridos e aparelhos coloridos. Junto ao termo branco de Arlindo, a loja se parece muito a um diner americano no meio do sertão brasileiro. Isso dá um pouco de cor ao filme, o qual não tem todo aquele tom pastel e dramático do original, sendo muito mais colorido.
O contraste nas cenas internas é muito forte, enquanto as externas abusam das cores. Como dito, o drama não está tão presente como no primeiro, e mesmo as cenas tristes são levadas com mais leveza. É um filme essencialmente de comédia.
Também não podemos esquecer o aspecto religioso. A obra de Suassuna, como A Divina Comédia, é um manifesto teológico. Um apelo à misericórdia, como na linha jesuítica defendida pelo Papa Francisco de que devemos rezar para que o inferno esteja vazio. O filme atual não perde esse aspecto, ao falar bastante sobre a fé, a piedade popular e chega ao ponto de João Grilo defender a aposta de Pascoal num programa de rádio (se eu acredito na vida eterna e nada houver, nada acontece; se houver, gozo os frutos do Paraíso). O filme não perdeu a alma de Suassuna. Jesus ainda tem que ouvir a pergunta se ele é protestante! Porque na terra do grilo é assim, quem fica recitando a Bíblia de cor, na certa é protestante. Até que há um quê de ousadia num filme se declarar católico, com eventuais referências às religiões de matriz afro, num Brasil cada vez mais neopentecostal. Será que fundamentalistas vão atacá-lo?
Fora algumas cenas de humor meio exageradas, que causam um pouco de vergonha alheia, e o merchandising numa produção que não tem nada de independente e, portanto, não precisava disso, minha impressão geral sobre o filme é boa. Acabei sendo surpreendida.
Vale lembrar que há uma tendência de resgatar clássicos. Estômago 2 (2024) foi outra sequência do cinema brasileiro que ousou desafiar o clássico de 2008. Acho que este último se saiu melhor que O Auto da Compadecida 2, com um caminho mais criativo para uma sequência. Só que eu termino dizendo o que disse no começo: vale assistir ao filme considerando-o uma releitura ao invés de uma sequência, aí sim vamos aproveitar bem melhor.
Elenco:
Direção: Guel Arraes e Flávia Lacerda.