Daniely Silva

Resenha d'O Mulato (1881), Aluisio Azevedo

Retrato em plano fechado de moça sorridente Daniely Silva -
Tempo de leitura: 7 minutos. Resenhas brasilidade filmes

Há tempos quis resenhar o romance O Mulato, publicado em 1881, de Aluisio Azevedo. Acontece que o tempo passou e me fui esquecendo do livro; já não estava tão fresco na memoria, de sorte que ainda tenho as minhas fichas dessa obra que, passe o tempo que passe, segue inesquecível. Não ia me arrepender se tivesse que reler!

Foi o segundo romance publicado pelo escritor maranhense, bem antes do consagrado O Cortiço. Aluisio Azevedo, embora conhecido por este último, tem uma obra muito mais vasta.

O Mulato contra a trajetória de Raimundo, homem fino e letrado, que acaba de voltar dos estudos na Europa, estudos estes já deixados pagos pelo seu finado pai José, homem cercado de mistérios. Aí já está posta uma das grandes perguntas da trama: quem matou seu pai? E, mais importante, quem é a sua mãe? Sempre que faz essas perguntas, todos desconversam e saem de fininho.

Raimundo, voltando de Portugal, passa um tempo na Corte, o Rio de Janeiro, e vai ao Maranhão na intenção de resolver negócios pendentes antes de fixar residência na cosmopolita capital do Império. Ele fica na casa do tio, Manuel da Peixada, quem o criou após a orfandade, e acaba por desenvolver um romance com a prima Ana Luísa. Mas, num Romeu e Julieta tropical, eles não podem ficar juntos por alguma razão.

Mas por que, meu tio?, perguntava ele, sem entender, já que era homem distinto, honrado e de posses, mas o tio foge do assunto. Reforço que a questão consanguínea não é um problema naquele contexto, portanto, sequer é cogitada. Num mundo onde tios e sobrinhos sem unem sem escândalos, a união entre primos não seria um problema.

Próximo ao clímax da obra, Raimundo faz um ultimato ao tio para que explique o porquê das negativas aos pedidos de casamento. Ele não ignora o quanto a vizinhança o trata com diferença e como param de conversar diante de sua chegada.

as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera o espelho e lhe dissera: “Ora, mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de meninos aos moleques da rua. (AZEVEDO, 1881, p. 228)

Com uma velha abertamente racista e um cônego Cônego Dias, o padrinho de Ana Rosa, abertamente contra união, a vida de Raimundo virou um inferno. Mais adiante, descobriremos que o padrinho não é contra o romance somente pelo racismo: há algo tão perverso por trás que o envolve diretamente com a história de Raimundo e o pai.

Aluísio costumou muito bem a crítica à escravidão e à hipocrisia de uma sociedade carola e provinciana. Ele trabalha bem o suspense, criando uma atmosfera de tensão que chega ao ponto do terror. Futuramente, o autor até aventurar-se-ia pelo gênero, mas, independente disso, a escravidão foi a pior narrativa de terror que assombrou o Brasil independente por 66 anos; e o pior de tudo é que essa história de terror foi real e deixou feridas que duram até hoje.

Foi uma fera! às suas mãos ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima, mãe dos infelizes. (AZEVEDO, 1881, p. 41)

Não há outra palavra senão o horror para descrever a regressão ue conta o tratamento dispensado aos escravizados na fazenda onde Raimundo nasceu. Os gritos que dali partiam criaram lendas sobra o local ser assombrado, afastando os curiosos mesmo depois da sucessão de eventos que tornou o local abandonado. O que acontece é tão aterrador que ficamos com uma sede de justiça e vingança num desfecho que envolve o pai de Raimundo, seus amores e o padre Diogo Dias, à época ainda não tornado cônego. Quando pensamos que tudo já é absurdo demais, Azevedo consegue trazer novas surpresas ainda mais impressionantes em meio a esse retorno na linha do tempo.

Foi nessa sucessão de eventos que percebi um padrão que, existente nessa obra, coincide com aquele observado no também naturalista do mesmo autor Casa de Pensão (1994) e nas realistas do português Eça de Queiroz O Crime do Padre Amaro (1875) e O Primo Basílio (1878). o roteiro comum consiste em:

Cotidiano → Crítica Social → Intriga → Origens da intriga → Escândalo → Marasmo da aparente resolução do escândalo → TRAGÉDIA → A vida continua como sempre foi, não há justiça.

Não sou estudiosa das Belas Letras, sou só uma leitora, mas esse roteiro faz sentido diante das minhas leituras. No caso d’O Mulato, o cotidiano se trata do retorno ao Brasil e do dia a dia de convívio com o tio, a prima e a vizinhança futriqueira.

Lembrar-se de que ainda nasciam cativos, porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!… (AZEVEDO, 1881, p. 248)

Na sua crítica social, ele não poupa nem o Clero e a Igreja na sua associação com a empresa escravocrata. Ele mostra isso na personagem do cônego Diogo, envolvido em atos espúrios que descobrimos ao longo da leitura. O clérigo não tem o menor constrangimento em sugerir um aborto para prevenir um escândalo.

Aluísio, como os demais intelectuais descentes de sua época, não escondia sua intolerância à persistência da escravidão no Brasil àquele altura do Segundo Reinado. O atraso na abolição tornava o país um párea entre as nações.

Só que o autor ia além da questão da escravidão aos denunciar como o racismo atingia também os homens livres, realidade que ele foi capaz de enxergar sob a ótica oitocentista e hoje muitos se fazem de cegos ao negar o racismo estrutural.

Ser mulato neste país racista também é ser negro, tanto nos dias de hoje como o era no século XIX para homens e mulheres que tinham que se passar por brancos para circular entre as elites. Escondia-se ao máximo a origem negra desses mestiços e, quando se a mencionava, era no intuito de diminuir ou de exotificar.

Entontecia de pensar nele. O hibridismo daquela figura, em que a distinção e a fidalguia do porte harmonizavam caprichosamente com a rude e orgulhosa franqueza de um selvagem, produzia-lhe na razão o efeito de um vinho forte, mas de uma doçura irresistível e traidora; ficava estonteada. (AZEVEDO, 1881, p. 95)

Nos últimos anos, caímos numa questão etimológica da palavra. Circula em vários meios se tratar de um termo politicamente incorreto por, supostamente, derivar de “mula”; de primeira até que faz certo sentido, visto que ambas as palavras vêm do latim “mulus”, termo para híbrido, mestiço ou mistura. Mas a verdade é que não há base para supor tal derivação, embora, como dito, o termo tenha sido usado para estigma e exotificação, como vemos no romance, incluindo a forma como o autor desenha o pensamento de Ana Luísa direcionado à figura de Raimundo.

É a partir do estigma social do mulato que se desenvolvem as intrigas, alimentadas, principalmente, pelo Cônego Diogo e dona Amância. A grande questão se volta às origens da intriga: descobrir o que provoca os murmúrios e o tratamento diferenciado, o que implica em investigar a origem de Raimundo. Num dado momento da trama, ele sai pelo Maranhão numa jornada, na companhia do tio, em busca de suas raízes. Sob muita insistência, o tio consente em levá-lo à antiga fazendo do pai. Nesses momentos, temos o ápice da tensão com as relevações sobre a teia de tramas familiares. Só que o tio, por receios, ainda omitia a parte principal, a mais dramática. É aí que o enredo nos surpreende com ma nova reviravolta capaz de deixar paralisados leitor e protagonista. Um encontro inesperado faz o tio se convencer a revelar toda a verdade, depois de acompanhar a reação de Raimundo ao encontrar uma mulher desconhecida nos rincões da fazenda.

A partir daí, já ciente de tudo o que envolve o seu nascimento e o que enfrenta na fase adulta, tem a hombridade de enfrentar o mundo num plano meticulosamente traçado.

Tudo parecida encaminhado para o sucesso do romance, o plano ia bem costurado. No entanto, uma tragédia irrompe brutalmente. Ácido na conclusão, Aluísio traz um epílogo à moda naturalista: um cotidiano pós-eventos que parece injusto aos nossos olhos e resignado para as personagens. A vida continua como se nada tivesse acontecido, Lulu, queridinho.

Escrito aos 21 de abril de 2025, Feriado de Tiradentes.