Daniely Silva

Mercadante e os homens de bigode

Retrato em plano fechado de moça sorridente Daniely Silva -
Tempo de leitura: 5 minutos. Crônicas brasilidade reflexões

Julio Wiziack: Eu tenho uma [pergunta] pessoal e eu vou fazer, não me aguento. Eu tava vendo seus vídeos ali, né, de 30 anos pra trás, tal, e em todos você tá de bigode. Você nunca pensou em tirar esse bigode?
[Gargalhadas]
Mercadante: Mas cê sabe, foi fantástico…
Julio Wiziack: Não é uma crítica, não.
Julio Wiziack: Desculpa, eu tinha que perguntar.
Mercadante Eu fiz esse ano 50 anos de militância, desde que assumi a presidência do centro acadêmico. Então eu fui presidente do Centro Acadêmico na USP, depois presidente da Associação de professores, fui deputado duas vezes, fui senador, fui vice do Lula, fui ministro em três ministérios quatro vezes. Sou presidente da fundação, hoje presido o BNDES. Mas tem algumas coisas que eu não mudo! Tem valores essenciais, a causa que eu luto, que eu represento, não importa a função que eu tive. Por isso que eu não disputo eleição, Vera, falei pra Vera, ela não acreditou. Eu não disputo eleição desde 2010, já disputei tudo que é eleição, não tem mais sentido. Eu quero contribuir no lugar que eu tô, formulando, debatendo…
Vera Magalhães: Mas o que o bigode tem a ver com isso?
[Gargalhadas]
Mercadante: Agora, um bigode no Brasil é o seguinte: tem princípios que a gente não negocia e não muda. Então tem que ter coerência na vida e tem que ter compromisso. É uma forma de dizer o seguinte: eu passei por muitas funções, mudei muito visualmente, mas algumas coisas eu não entrego, serei o que eu sou!

Trecho da entrevista a Aloizio Mercadente no Roda Viva exibido aos 15 de maio de 2023.

O homem de bigode é um homem de princípios, é aquele que assume não só um estilo, mas um modo de viver. Não, não falo daquele que passou a usar bigode como um experimento, esse só teve a sarcástica ousadia de se fantasiar de uma categoria da qual ele não faz parte. É uma moda que vai e vem, mas há aqueles homens não usam bigode: o bigode simplesmente é parte deles. Remover esses pelos pode ser perigoso: até a personalidade pode mudar e a saúde fraquejar, é como tirar os cabelos de Sansão.

Todos os meus tios usaram bigode, ao menos em algum momento da vida. Dois deles morreram e foram enterrados de bigode: o do lado materno tentou tirá-louma vez, mas era algo mais forte que ele: o bigode voltou e o acompanhou pelo resto da vida; o do lado paterno não deixou de usá-lo sequer por um mês da sua vida longeva e, inclusive, mal seu nome sabíamos, conhecendo-o apenas pela alcunha de Bigode.

Um outro tio viveu por mais de 50 anos de bigode. Foi um espanto visitá-lo depois de algum tempo sem vê-lo e encontrá-lo sem o seu companheiro de tantas décadas. Foi assustador! E pior foi vê-lo tentando se justificar.

Falava que com a pandemia, essa história de máscara e bigode já o estava incomodando. Numa certa tarde de isolamento social, sem nada pra fazer, foi ao banheiro e se olhou no espelho por um tempo. No auge dos seu 70 e tantos anos, foi tomado por um impulso incontrolável e rapou os pelos acima dos lábis.

No que ele contava, a esposa, minha tia sergipana de voz marcantemente aguda, completou:

“Aí quando ele saiu do banheiro e veio pra sala, eu logo falei: Vixe! O que fizeram com meu marido!”

Ela não pôde deixar de compará-lo ao outro meu tio, seu irmão, um desbigodado que também fez a mudança depois de certa idade. Esse era famoso pelo bigode, já levou até o apelido do sambista carioca Agepê.

Ainda acho que o meu tio voltará a ter o bigode nalgum momento da vida. O bigode é quase um super poder ao qual poucos homens têm a garra de assumir.

Uns anos atrás, em tempos do auge da carreira de MC Livinho, via um bigode atrás do outro nas ruas. Pelo visto, ele continua de bigode! Talvez seja mais um homem bem fiel aos seus princípios. Aí, de uns anos pra cá, percebi que o bigode sumiu das ruas: talvez todos os bigodudos tenham se escondido num tipo de conclave, porque agora eles voltaram com todo o gás, aparentemente substituindo a moda do cavanhaque.

Desconheço algo na mulher que tenha a potência de um bigode no homem. Aceito que nem todo mundo pode gostar, mas um bigodudo jamais passará despercebido. É uma moda que vai e vem, mas aquele que é fiel sempre manterá o seu. E o conjunto de barba e bigode não basta! O quanto um bigode pode ser estiloso desde tempos remotos nos mostra a moda oitoscentista, com as faces marcantes de Aluísio Azevedo, Eça de Queiroz e Santos Dumont. Já no século XX, o nome de Freddie Mercury completa esse mosaico.

Diz a Enciclopédia Britânica que no Reinado de Henrique VI proibiu-se o bigode, num ato que obrigava os homens a raspar os pelos acima do lábio. Conta-se também que, emissários provenientes do Iemen, enviados pelo imperador da Pérsia, numa visita ao Profeta Mohamad, foram duramente reprimidos e orientados a que seu povo raspasse o bigode e deixasse crescer a barba. Por isso, talvez o bigode também seja uma história de resistência, embora gente muito questionável e seres humanos desprezível também o tenha usado a vida inteira, mas vou dispensar de citar seus nomes. Também pode ser coisa de milico, polícia e vigilante: não podendo usar barba, sobra o bigode que tanto marca esse tipo de profissional.

Gostando ou não, bigode é história, é personalidade e, como disse o nosso ministro, é apego aos valores essenciais dos quais não se abre mão.

Bigode
Homens de bigode
Têm seu poder
um de enlouquecer

Me trava até a glote
Ver esse contorno
Pára o coração
Essa perfeição
Foi saída do forno
Que bênção de Deus!

Faça o que quiser
Tens passe de fé
Vôo aos braços seus

Poema escrito aos 26 de março de 2025.