Daniely Silva

Água perdida

Retrato em plano fechado de moça sorridente Daniely Silva -
Tempo de leitura: 5 minutos. Crônicas brasilidade causos

Meu tio não viveu para ver a explosão das inteligências artificiais generativas, mas sempre gritava ao Google para que lhe mostrasse o cemitério de Bezerros. A assistente de voz, hoje Gemnini, não entendia e ele berrava ainda mais alto. Bruto no trato com pessoas, animais e robôes, ele nem chegou a tentar pedir para ver o cemitério da cidade vizinha a Bezerros, Sairé.

Vitimado pela poítica genocida de Jair Messias Bolsonaro na pandemia, ele não viveu para conhecer o Gemini, o ChatGPT e o DeepSeek. Quem sabe um desses achasse também o Cemitério de Sairé. Podem até achar, mas não vai poder contar o que o lugar esconde, porque são histórias que o povo conta e o treinamento vigilante das AIs ainda não sugou os relatos orais.

Esta anedota era um outro tio que contava. Região do agreste, a seca não é tão comum como nos sertões de Euclides da Cunha e no Polígono das Secas de Rachel de Queiróz. Mas naquele ano do suicídio de Vargas, ou o ano seguinte, ou anterior, meu tio mal se lembra, não choveu. As cisternas foram secando e também as cacimbas. Poder-se-ia supor um alívio haver um modesto açude nas proximidades do Sítio Cacimba Nova. Acontece que não havia alívio porque o dono daquele pedaço de terra negatva a todos qualquer jarrinho d’água.

Quem se atrevesse em tocar as águas sem autorização corria o risco de levar mordida de cachorro ou ser espantado à chuva de balas.

Não era nenhuma classe de coronel, sequer tinha jagunço. Era só um viuvão com um pedaço de terra. Com uma filha no Recife e um pequeno comércio em Caruaru, volta e meia se ausentava da propriedade para visitas à menina ou vistorias á loja, mas as viagens eram tão curtas quanto um sopro do vento na Caatinga.

Numa dessas ocasiões, dona Zila, aos seus 68 e cara de 88, ousou ultrapassar a linha imaginária que separa o território dos Oliveira do dos Souza. Vinha com um grande jarro de barro, uma autêntica cerâmica sertaneja que deveria ter 1/3 da sua altura ou mais. A velha deliciou-se naquela água: não ia beber sem filtrar, mas aproveitou para refrescar o rosto, lavar as mãos e molhar os braços. Também lascou água na nuca, água que logo evapora sob o ar seco, levando um pouco do calor do corpo calejado pelo Sol.

Não havia tempo a perder, enxugou o rosto nas mãos enrugadas e tratou de encher o jarro. Quantos litros deviam caber ali? O que mal daria para lavar uma louça na Zona da Mata seria a água da semana para aquela infeliz com uma renca de filhos, netos e bisnetos.

A aparência sofrida era de fraqueza, mas ergueu o jerro com peso de um bezerro com uma força de deixar muito cabra macho com inveja.

Seguiu invicta para sua maloca, o coração batendo em triunfo. Já avistava a sua morada ao longe, por trás da colina, quando cruzou a porteira quebrada e esbarrou a mula do Velho Souza. Logo surgiu quem a montava por detrás de um juazeiro, onde terminava de urinar e foi caminhando lentamente em sua direção.

— Vai pra Bahia, fecha a braguilha. Quem vai pro Ceará, que ajude a fechar! Bom dia, seu major.

Ele nem se lembrara de fechar as calças e o cinto, já com o revólver enferrujado na mão. A tentativa de descontração da velha não adiantou, ao que ela pôes o jarro ao chão para implorarp ela vida, em nome de Nossa Senhora das Graças e de Santo Expedito. Nem o fato de que ele era devoto dessa santa adiantou.

A partir daí, vou ter que quebrar a quarta parede para dividr o causo em duas versões. Dizem que ele pegou o jarro do chão e o quebrou na cabeça dela: além do galo na cabeça, ainda molhou a velha todinha. Como não é muito crível que ela não fosse ter um traumatismo carniano, a outra versão contada pelo meu tio em Natais diferentes diz que o dono disse à velha que podia levara água e, no que ela a ergueu na cabeça, ele estourou tudo num tiro de revólver, machucando-a com os estilhaços e, do mesmo modo, molhando a velha todinha.

Independente da versão, a seguir ela torce os cabelos prateados cheios d’água e o encara bem no fundo dos olhos:

— Miserável! Que fará com tanta água se teu descanso na morte não vai se dar até a terra secar. Até a Segunda Vinda tua cova irá chorar.

— Beata louca! Bruxa! Credo!

Ajustava a fivela do cinto e fechava a bragulha ao tocar a mula para dentro. Esqueceu aquela história por um tempo, até que a chegada do Inverno o vitima numa enxurrada. Aliás, o pobre do Inverno pouco tem a ver: um cabra que não aguentou desaforo o afogou no seu próprio açude.

Mas o pior vem depois. Antes de morrer, o velho erguera um lindo mausoléu pintado a cal, com uma Nossa Senhora das Graças no topo, mandara até trazer artista de fora. No que ele foi sepultado, não sei se bateram muito fundo na hora de abrir o túmulo, mas sucedeu que no amanhecer seguinte ao sepultamento uma poça perpétua se formou ao redor do túmulo: ninguém podia drená-la. Mas o povo daquele distrito no agreste fazia fila era pra ver uma coisa ainda mais esquisita: escorria água dos olhos da Nossa Senhora das Graças. Não era uma cachoeira, mas era água constante, a qual não deixaria de surpreender qualquer judeu, ateu ou protestante. A poça até diminuiu, mas a água até hoje escorre. Quem ouve a história por trás vai duvidar de que jeito?

A navalha de Ockham nos diz que a cova atingiu a ponta do lençol freático e que havia algum tipo de infiltração bizarra no mausoléu, mas a sabedoria popular diz que a língua da velha lançou maldição da braba.