Daniely Silva

Figuras do Transporte Público

Retrato em plano fechado de moça sorridente Daniely Silva -
Tempo de leitura: 4 minutos. Crônicas urbanidades emoção

Microconto: Metrô
O metrô era tudo novo para ela. Ficou abismada ao viajar, não sabia que existia aquilo: tanta gente no mundo.

Escrito aos 17 de julho de 2024.

O transporte público é onde se reúnem as massas, onde se encontram os vis e os virtuosos, os sacros e profanos, crentes e mundanos, enfim, todo tipo de gente que habita uma metrópole. É impensável conceber que tantos milhões de pessoas circulam, assim como é difícil entender que existe tanta gente no mundo.

O transporte público é das coisas mais incríveis que o século XIX nos proporcionou. E falo incrível nem num sentido positivo, mas de inacreditável: cabe tanta gente num pedaço de lata. Ele pode ser insalubre ou pode ser o grande motor da democratização dos espaços públicos, visto que ele dá o que uma cidade mais precisa: acesso. Bondes movidos a mula, bondes elétricos, trens de subúrbio, ônibus, ônibus sanfonados, trólebus, metrô, vans, pau-de-arara… São tantos os tipos de todas as qualidades e decências.

Mas não vim falar de mobilidade urbana. Não diretamente, pelo menos. É que, no meio de toda essa massa formígica que se desloca pendularmente todos os dias nas cidades brasileiras, a gente encontra figuras que são quase espectros. São entes folclóricos e imortais, a gente vê ali e nunca esquece, porque marcam o cotidiano.

A primeira figura que eu menciono foi o motorista Jorge Barbosa. Acompanhou por uns anos minha Odisseia matutina no transporte público. Aliás, na madrugada, pois nem há Sol quando saio durante a maior parte do ano. Eu corria pra pegar o ônibus e ele sempre me esperava, volta e meia brincando ao dizer que ia me mandar para as Olimpíadas do Morro Doce. Figuraça, sempre de bom humor e bem disposto, a coisa mais doida que vi fazer foi parar o ônibus articulado no meio da rodovia para ajudar um infeliz a empurrar o carro logo à frente. Quem mais faria isso? Isso nem deve estar de acordo com o CTB, mas foi um louvável gesto altruísta.

Outra figura foi a cigana Soraia. Eu ia em direção ao Centro, ao final da tarde, e eis que ela se senta ao meu lado com um latinha de cerveja.

“Eu não bebo. Eu tô bebendo, mas eu não bebeo. Só tô bebendo hoje porque minha irmã morreu”.

A irmã morrera no Rio de Janeiro já ia pra um mês. Começou a me contar da sua origem na Zona Norte do Rio e no povo Roma e como estava distante do seu povo. Ao perguntar se eu bebia, ela me disse uma frase que nunca mais esqueceria:

“Quem bebe uma, bebe todas. Não tem como parar”.

Prometeu ler o meu futuro um dia, pelos búzios, pelo tarô ou pelas mãos. Tenho seu contato, mas os horários não bateram. Quem sabe a gente ainda não toma uma cerveja, apesar de que ela não bebe, mesmo que estivesse bebendo naquele dia. Mas não tem como parar, porque ninca é só uma!

A terceira figura espectral foi a Vovó Naná. Essa é bem recente! Pegava o ônibus sentido bairro no final da tarde, para descer no Mercado da Lapa. Uma figura quase folclórica: uma idosa de cabelos desgrenhados rezando o Santo Rosário em voz alta. Quase uma sobrevivente do Brasil católico, pois essa não foi martirizada pela nova era do Brasil neopentecostal e agrícola. Achei que fosse só mais uma beata, mas descobri que era uma pessoa doce e preocupada com o mundo, nada tinha de alienada. Não me leve a mal, mas ver alguém, sob Sol do meio dia, rezando o terço em voz alta no ônibus e benzendo galpões abandonados é uma cena no mínimo pitoresca. Contou sobre os trabalhos seus e de seu filho com a população em situação de rua e animais abandonados e ainda explicou a um cristão que não dissesse “Obrigado”,pois ela tudo vazia sem esperar nada em troca. A vovó Naná é bem informada, nada tem de bitolada e deve bem saber que a nossa forma de agradecer na língua portuguesa é uma forma reduzida da frase “Estou obrigado a retribuir-lhe por isso”. Sábia beata, ainda disse ter uma nora que é minha chará; profetizou que um Tadeu na minha vida, como a Daniele sua nora encontrou o Tadeu seu filho.

Findas as três figuras folclóricas, cito, in memoriam, o radialista Ricardo Boechat. Acompanhou praticamente os meus três anos de Ensino Médio na ida diária à escola técnica. Àquela época, o transporte era bem pior, então uma voz como a dele fazia toda a diferença naquelas manhãs. Estava no interior quando soube do acidente que o vitimou nas proximidades da minha casa. Nunca mais escutei a Band News FM, porque, se em 20 minutos tudo pode mudar, a Bandeirantes mudou muito mais com a perda de Boechat. Ainda me lembro dele mandando o fundamentalista cristão Silas Malafaia ir procurar uma rola, após as crises de histeria homofóbica deste último.

Cidade Grande
Ela se perdeu na cidade. Andava em busca de si mesma. Não se achou.

Escrito aos 9 de julho de 2024.