Guarapiranga

19 out 2024 - Daniely Silva Crônicas

Ave em primeiro plano sobre um toco de madeira; ao fundo, ilhéu em represa, tarde nublada

Seu Deco e Seu Fernando. Não se trata de ribeirinhos porque cresceram às margens da represa, não de uma clássica ribeira brava do Amazonas. Guarapiranga: do tupi clássico, lugar dos guarás vermelhos, a ave que nasce negra como a noite e enrubesce ao longo da vida.

Deco me contava sobre a pior seca vista nas suas quase seis décadas de vida. No Verão de 1985 para 86, podia-se chegar a pé até aquele ilhéu. Uma loucura! Levavam as barracas para a nova península e lá se tornou o novo ponto de recreação da região.

As famílias adoraram o novo espaço, belo e arejado. ERa isso o que as duas famílias aproveitavam. Dois casais, cada qual com uma menina. Mas represa é coisa traiçoeira, até pra quem sabe nadar e até pra quem já conhece a área. Que dirá pra duas crianças. Foi um desespero! Seu Deco era moço, tinha nem seus 30 anos, mas pulou sem pensar duas vezes. Seu irmão também, conheciam a Guarapiranga como a própria casa: são dois anfíbios.

A tragédia já se anunciava. Braçada pra cá e pra lá, eis que chegam os bombeiros. Não para ajudar, como Seu Deco já sabia de outras tragédias.

— Vou arrancar esse filha da puta daí!

O milico queria que saíssem da água, pra já.

— Venha então me tirar, pra você ver.

O tempo em que discutiam eram segundos preciosos para a vida das meninas.

— Quando sair vou te dar um pau! — afinal, o bombeiro entrou quando ele já saía.

— Pois então que venha, te espero às 10:30h no posto. Te mando pro céu!

Ainda tiveram tempo de aconselhar o militar que não mexesse com ele. PM por PM, o que lhe disseram ao bombeiro fez com que sumisse.

Mas, das meninas só uma sobreviveu. Um trauma. Ainda disseram que teria que ficar na água até o dia seguinte, porque não havia local coberto.

— Pois tá resolvido! — ofereceu sua barraca, fecharia tudo pelo tempo que precisasse porque não ia aceitar essa de largar o corpo da menina na água. Ainda assim, o corpo de anjo descansou ali sob a barraca até o dia seguinte.

Depois de tremenda seca, foi péssima hora pra vir a chuva. Aquilo vira uma desgraça na chuva, sobretudo torrencial assim.

— Vai ter que ir todo mundo embora.

— E a mãe?

— A mãe também.

— Difícil vai ser tirar ela.

Foi seu Deco quem a abraçou e lhe explicou como aquele trecho ia ficar com a chuva, até que ela saiu. Ainda perguntaram ao Deco: “E a barraca?”. A barraca fica lá, se perder, eu compro outra, mas a família nunca vai poder comprar outra filha, dizia ele.

No outro dia, outra situação com o rabecão. Afinal, agilizou-se sem a perícia. A família poderia agora se despedir, jogar o sal sobre a ferida pra sempre aberta.

A barraca até sobreviveu. Restva buscá-la, porque com a chuva constante as horas da península estavam contadas. Aliás, já nem se via terra, a água já cobria a passagem. É que Deco e seus companheiros sabiam onde a Kombi ia passar, pelo trecho mais raso. A mãe em casa, à outra margem, não deixou um minuto de rezar o Santo Rosário.

Uma loucura de atirar vários ferros e lonas ensopadas pra dentro da Kombi.

— Avança mais à direita.

— É à esquerda, homem.

— A gente vai afundar na água com Kombi e tudo.

— É à direita, confia.

Afinal, era mesmo à direita. Deco conhece cada metro da represa como se lá estivesse antes de ela ser represa.

— E agora?

— Agora a gente dorme e espera a chuva passar.