Daniely Silva

Cordel: Migrações

Daniely Silva -
Tempo de leitura: 6 minutos. Contos Poesia brasilidade escrita

38 sextilhas no esquema de rimas ABABCC.

Giovanna é o nome dela
Ela chegou de Garanhuns
Não é conto de Cinderela
Sofrida como outros uns
Pernambucana de história
Mulher cheia de memória

*

Agora já é outro tempo
Não existe mais pau-de-arara
No Brasil sopra outro vento
O Sul o povo buscava,
à triste seca fugiam
porque a esperança não perdiam

*

Só que ainda existe muito
Quem uma nova vida busca
Não se vem nada gratuito
A vida é uma grande labuta
Que busquem oportunidade
Desde que co’ honestidade

*

Chega de filosofia
Voltemos para Giovanna
Do Nordeste ela partia
Despedia a terra decana
Noutra cidade buscava
A outra vida que sonhava

*

Desembarcou no Tietê
Foi bem no dia 22
A cidade ela quis ver
Sua mala no chão pôs
Já acabava o mês de agosto
Mas um frio de dar desgosto

*

Que peleja achar um carro
Esse Uber é uma desgraça
Chegava tirando o sarro
Ficou enrolando na praça
E quando parou na esquina
o carro tava u’a catinga!

*

— Acho que o caminho é outro
Confira o endereço que
está diferente, moço
Ela mora em lugar chique,
cada mansão de novela
Aqui parece é u’a favela!

*

— O Jardim Ângela é aqui,
de jardim não tem é nada
Se ela disse isso pra ti,
é mentira deslavada
Tá certo o endereço, mano
Sua prima te passou o cano!

*

No peito não cabia a fúria
Se era isso, ficaria lá
Pra quê tal mentira espúria?
É claro, revoltar-se-á
E ficou mais aperreada
vendo a cara da safada

*

— Que saudade, minha prima
Quantos anos não te vejo
Suba já aqui pra cima
Dum café tu tem desejo?
— Vou, o frio tá é de lascar
Mas antes vou te abraçar

*

Com raiva da mentira, sim
E o coração indignado
— Não morava nos Jardins?
Isso aqui é um morro lascado
Venha cá sua rapariga! —
Quando dum tapa foi desferida

*

— Rapariga não me chame
Que eu tenho dignidade
Da arrogância, desencane
Com tanta desumildade…
Respeite! E fique na tua
Fora daqui e já pra rua!

*

— Eu já muito trabalhara
Não sou nenhuma aleijada
Vou-me já pro Jabaquara,
serei menos azarada
Pegou o ônibus pra Santos
mas, na real, estava aos prantos

*

Na Rodoviária chegando
Já era de madrugada
Ainda pior: seguia garoando
Quando viu, estava lascada
Sem grana e sem agasalho
Fazendo um frio do caralho

*

Eis que bateu um vendaval
Levava tudo o que vinha
No seu colo caiu um jornal
Uma chance agora tinha
Aproveitaria a oportunidade
Dum emprego na cidade

*

Foi trabalhar pra uma velha
Logo não aguentava mais
A velha só fazia relha
E não respirava em paz
Pra cabeça não perder,
mandou a velha ir se foder

*

— Ai, meu Deus, se acabou tudo
Tanto bem que eu te queria
— Pois eu sim me mudo
Eu não me arrependeria
Nem se jurasse de joelho
A senhora olhe no espelho!

*

Lascada estava de novo
Podia ali não ser São Paulo,
mas também não é nenhum ovo
Santos não é fácil o trabalho
Ela outra vez sem emprego
Giovanna caía no desterro

*

Agora ti’ha um pé-de-meia
Poderia se dar ao luxo
Pensaria depois da ceia,
antes ia encher o bucho
Já no primeiro boteco
Pediu pra encher o caneco

*

Eis que um moço colou nela
Como não quisesse nada
— Que que faz moça donzela
Em boteco risca-faca?
Aqui não é lugar pra tu
Só pra véia e jeca-tatu

*

— Moço, é cada história doida
Você não acreditaria
Estou ainda muito afoita
A Garanhuns voltaria
Da mi’ha prima fui enxotada
E ainda estou desempregada!

*

— Você vem daquela Lua
Essa mesma que brilhou
sobre o presidente Lula!
— Lá município virou
Era o distrito Caetés
E diga: tu de onde é que és?

*

— Com todo prazer, meu nome é Hugo
Também te’ho a história arretada
De um problema eu também fujo
Venho de Serra Talhada
Nem dá pra enfrentar na raça…
Mas me diga: qual é a sua graça?

*

Com horas de prosa
Percorrero’ o canal 7
Galante, deu-lhe uma rosa
Ousado, ele a cara mete
Pois nada tinha a perder
Se encantara pra valer

*

Foi intensa a noite d’amor
Com promessas tantas ditas
Mas mudar o rumo eu vou
Poupo histórias repetidas
Agora se espante e veja:
o cabra era homem da Igreja!

*

Casado já era com Deus
Ela que se apaixonara
Viu-o vestir-se e dar adeus
Mas na gola ela o agarrara
— Volte aqui, cabra safado
Que eu vou dar-lhe já é um sopapo!

*

— Que desgraça, que desgraça —
Ela só repetia
— Quem dera isso se desfaça —
Concluía entre essa lato-mia
Para um padre acabou dando
Que ainda quer ser franciscano!

*

— Agora estou desonrada
Casar virgem era o meu sonho
do qual me restou foi nada
Em desespero me ponho
Mergulhada nessa intriga,
resta virar rapariga

*

— Deixe de ser tão carola
Nem lembrou de virgindade
quando rebolou na rola
Vou te dizer a verdade
Nem pra mula-sem-cabeça
tu presta, sois doida à beça!

*

— Faz vergonha um frade ateu!
Tu devias ter mais respeito
Co’ as coisas de nosso Deus
De canalha tens o jeito
E depois desse ocorrido
vou te denunciar ao bispo!

*

— Não, Giovanna, não faça isso
Eu, de coração, te imploro
Este é meu único serviço
Se ele perco a vida pioro
A meu vô fiz a promessa
O sonho dele não impeça

*

— De sonho que você fala
E quanto ao meu já destruído?
Tome vergonha na cara
Porque você é um homem instruído
Mas ainda fosse um matuto
Ia ser brabo e encarar tudo

*

Pegou a bolsa e saiu do quarto
Foi tranquila ao elevador
Mas quando olhou para o lado
Não escondeu todo o estupor
Belo que nem São Francisco
com bravura do Corisco

*

Mas que bravura, que nada
É sim uma covardia
Batina marrom queimada
Era um safado, quem diria?
Frade ameaçando moça
Não se vê isso nem na roça

*

Feito doida saiu p’la rua
Disparava o coração
Corpo coberto e a alma nua
Farol alto, um caminhão
Quase sendo atropelada
implorou desesperada

*

— Moço, me leve aonde vais
Me conceda essa carona
Santos pra mim não dá mais
— Te levo a São Paulo, dona
Lá, na certa, ‘cê se acerta
A minha porta está aberta!

*

Não vai ter final feliz
Acontece, é mesmo assim
Não é fácil, mas ninguém diz
Minha poesia aqui tem fim
Tanto sofrimento que
sua história não acaba aqui

*

Se esquivando da cilada
co’ o caminhoneiro Paulo
ela fugiu pra outra estrada
O que acontece em São Paulo
Você fica aí a imaginar
Dá até outra história pra contar

Finalizado aos 28 de fevereiro de 2025.