Daniely Silva

Pelas curvas do Cone Sul: no último dia, senti saudade


Espaço amplo com idosa caminhando ao centro, sobre reflexo roxo.

Numa rápida e corrida viagem pelo Cone Sul, quase me perdi conhecendo quase todas as suas capitais. Se ainda me faltam a Pacífica Santiago do Chile e la Asunción de Paraguay, não me faltam lembranças de Floripa, Buenos Aires, Montevideo, Porto Alegre e Curitiba, com direito às capitais departamental e provincial Colonia del Sacramento e Córdoba. Deixei o Terminal Rodoviário Tietê numa noite de 2 de maio, com mochila tão pesada quanto a carga de trabalho de um ano de espera pelas férias. O tempo era levemente frio, não havendo grande choques de temperatura no decorrer da maior parte da viagem. [...] Apesar de tudo, não me sentia bem; perguntava-me se esse mal estar era resultado da ansiedade. Sabia que não era fome, então sobrava pensar que era culpa do café amargo.

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Os empregados ferroviários eram todo muito corteses e, quando viram que o auto-falante não funcionava, foram mesmo no gogó para fazer as orientações e informativos da viagem. Foi o único momento em que se ouvia com clareza um porteño: quando gritando, porque, com essa exceção, percebi que falam muito baixo. Ou, talvez, a amigdalite tenha prejudicado minha audição e o problema não estivesse neles; essa dúvida só vou tirar na minha próxima ida às terras do Plata.

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Chegando pela manhã, o primeiro a me chamar a atenção foi que as caixas d’água se assemelham a grandes túmulos, fazendo com que o subúrbio da cidade se assemelhasse a um enorme cemitério — talvez é isso que queiram do subúrbio nos países periférico: um lugar onde se pode enterrar as massas trabalhadoras.

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Ao fim daquela tarde na capital da província, finalmente visitei El Mirador, conhecido cartão-postal de Córdoba. É, talvez não tivesse visto tudo no primeiro dia, porque, às vezes, o melhor fica pra depois. El Mirador se trata de um escadão do Parque Sarmiento, principal parque da cidade e onde também fica o Museu Provincial de Ciências Naturais. Para falar do escadão, voltamos à questão do relevo mencionada pelo brasileiro residente em Buenos Aires: algo super comum nas principais cidades brasileiras, mas excepcional em terras argentinas. Em todo caso, a vista era lindíssima: uma roda gigante à direita, a província arborizada ao fundo e, à frente, uns edifícios elegantes e uma ladeira diante do escadão. Subi a um lugar alto e fiz uns croquis, mergulhando na paisagem. Um rapaz me chamou, preocupado. Era o rapaz que me falara sobre o zoológico e as contradições entre uma cidade vegana que é tão carnívora. Ele me compartilhou um mate e conversamos sobre filosofia e liberdade. Era um estudante de arte que vinha da província; na verdade. De um subúrbio, era periférico como eu, filho de migrantes como eu. Foram poucas horas de conversa, mas a interação mais interessante que tive nessa viagem. Identifiquei-me com as contradições, num momento em que me sentia só. Também lhe devo uma por não ter me deixado morrer de tédio em Córdoba Capital, porque me indicou três cidades da província para visitar: Carlos Paz, Tanti e Jesumaría.

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Por falar nisso, algo que me despertou a atenção foi ter visto o primeiro templo protestante em toda a viagem ali, em Alta Gracia. Tratava-se de uma igreja protestante tradicional, talvez luterana ou calvinista, não me lembro ao certo; havia, também, um templo adventista e um mórmon, o qual havia visto também em outros pontos da Argentina. O mais importante é que, na viagem inteira, não vi sequer uma igreja neopentecostal. Isso diz muito sobre a demografia de nossos países. O Brasil pode até ser o país com maior número absoluto de católicos no planeta, mas, hoje em dia, aonde quer que se vá, haverá uma presença evangélica, em qualquer rincão do Brasil. Chuto que mais de três quintos da população argentina seja católica, fazendo jus ao primeiro Papa não europeu em séculos. Não tendo uma bancada evangélica como o Brasil, acredita que a Argentina ainda sofra muita influência da igreja romana; não à toa, até pouco tempo atrás, era exigido de um presidente da república que professasse o catolicismo. O melhor exemplo disso foi a apostasia de Menen, o presidente sírio, que abandonou o Islam em prol da fé católica para poder presidir o país (a regra foi abolida na reforma constitucional de 1994).

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Chegar a Colônia foi como estar numa cidade brasileira, embora reste pouco do que foi construído pelos portugueses. Tudo lá era muito caro, como os turistas merecem, pois quase não havia nativos à vista. Já tonta com a vista, acabei conhecendo dois locais que viveram, cresceram e estudaram em Colonia del Sacramento. É uma cidade como qualquer outra, afinal. Eles me ofereceram marijuana legalizada e me contaram sobre a cidade e sobre os vacilos dos turistas. Foi o melhor que já fumei em toda minha vida. Fiquei encantada vendo o pôr-do-Sol beijando o mar que não é mar, o tal rio que é quase mar. Minha visão proseava com o cérebro enquanto desenhavam delicadas formas geométricas através daquelas nuvens cirrus e daquela maré, com sua caligrafia ancestral.

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Ainda naquele dia, cheguei tarde da noite à capital do país, onde encontrei uma cidade bem menos maquiada que as argentinas, apesar de também elegante. Parecia bem brasileira. As ruas estavam desertas ao longo da minha caminhada até o hostel, não havia a boemia porteña. Tive medo. Tive medo, sobretudo, quando o hostel não atendia à campinha. Eu não tinha um chip de celular daquele país, não havia como telefonar ou me conectar à rede. Ficaria eu à deriva? Seria roubada, sequestrada? Dormiria na praça? Voltaria à rodoviária? Ai, meu Deus, já é quase meia-noite!

Nada disso foi necessário, porque atenderam à campainha; o recepcionista só estava conversando na cozinha. Ainda tive tempo de ir a um bar com uns uruguaios, uma paraguaia e uma boliviana de Santa Cruz de la Sierra. Um guapo me explicou sobre os tipos de marijuana que se compram no país: a da farmácia e la crema, que é como um corre legalizado e mais forte que a vendida oficialmente. No caminho para o bar, fumamos la crema e depois experimentei a maior novidade do mercado: maconha estatal. Ela tem mais cara de saudável e dá menos barato, mas já é melhor do que a melhor do Brasil.

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Sequer fiz muitas observações sutis, só não pude deixar de perceber que Montevidéu cheirava a água oxigenada, o que meu olfato também percebeu em Colônia. Por que será? Também tive sede no país. Como na Argentina, não havia bebedouros, mas no Uruguai a água da torneira tinha o sabor adocicado da putrefação de um cadáver humano. Era difícil de beber, tanto como era difícil carregar a mochila que me puxava para o chão. Em Colônia, havia visto algumas placas sobre a greve da companhia de água — não sei se havia alguma relação ou era algo que se devia ao tratamento empregado. Mas acho que essa água era saudável, porque não passei mal — mais fácil seria passar mal por não bebê-la.

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Foi em Porto Alegre que matei a saudade do boteco e do PF, que não é um policial federal, mas o nosso prato-feito, tão bem servido a um bom preço. Que saudade eu tava de um boteco! Talvez seja essa a verdadeira brasilidade. Ainda que vestindo trajes regionais, há algo comum nos botecos de todo o Brasil, seja nas Minas, em Pernambuco ou no Rio Grande do Sul: uma comunidade espalhada do Oiapoque ao Chuí. Logo pela manhã, fui rebatizada com o pingado em copo americano (mais brasileiro que Carmen Miranda), que foi acompanhado por uma empada de Porto Alegre melhor que as empanadas porteñas. Também achei o atendimento gaúcho primoroso e melhor que a média paulistana.

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A vida já cobrava voltar, porque, nesse dia, depois de enfrentar o engarrafamento curitibano pela manhã e o da Marginal Tietê pela tarde, ainda teria uma aula à qual não poderia mais faltar, na São Paulo de Piratininga. Que bom que acabou cedo, porque, quando olhei o espelho, não vi uma pessoa: vi um farrapo. Mas era isso o que eu era depois daquela viagem: um farrapo de gente com mais aprendizado e com uma ou outra anedota pra contar.


Ponte Pênsil ao fundo, árvores em primeiro plano.
Táxi em rua repleta de edifícios e obelisco ao fundo.
Táxi em rua repleta de edifícios e obelisco ao fundo.
Rua repleta de edifícios e obelisco ao fundo; no meio, pedestre atravessa a rua.
Foto inclinada; rua repleta de edifícios e obelisco ao fundo.
Edifícios contemporâneos diante de canal de água.
Edifícios envelhecidos e torre de relógio ao fundo, entre a neblina.
Cidade média diante de lago e serra ao fundo.
Edifícios, parque, roda gigante e província ao fundo.
Edifícios, parque, roda gigante e província ao fundo.
Ponte Pênsil ao fundo.
Ponte Pênsil ao fundo.
Ponte Pênsil ao fundo.
Ponte Pênsil ao fundo.
Vista para a província entre edifícios e casario térreo.
Vista para a província entre edifícios e casario térreo. Motocicleta vermelha à esquerda.
Vista para a província entre edifícios e casario térreo. Vista oblíqua, carros estacionados.
Interior de igreja antiga com porta entre-aberta em contra-luz.
Rua suburbana em ladeira e serras da província ao fundo.
Embarcações atracadas em rio, céu nublado.
Silhueta urbana sobre as águas e sob céu intimidador.
Silhueta urbana sobre as águas e sob céu intimidador.
Rua com carros estacionados coberta pela copa das árvores.
Interior de igreja antiga com bancos de madeira e Santíssimo Sacramento no altar.
Janela de pedras de igreja antiga, luz e sombra.
Dupla contempla as águas entre pedras marítimas. Quebra-mar ao fundo.
Pessoa solitária entre rochas marítimas contempla veleiro entre ilhas.
Pessoa solitária entre rochas marítimas contempla veleiro entre ilhas. Pássaro corta o céu.
Embarcações atracadas em antigo píer. Chaminé ao fundo.
Rochas marítimas e veleiro entre ilhas sob o céu alaranjado do pôr-do-Sol.
Pôr-do-Sol no mar diante de veleiro. Ramos de palmeira ao redor.
Chaminé e edifícios à beira-mar.
Chaminé à direita, mar predomina à esquerda sob o céu azul.
Igreja antiga e construções à beira-mar sob o céu azul.
Família agasalhada caminha em praia com capins sob o Sol com sombras alongadas.
Sol se põe entre prédios diante da praia.
Abóbada de catedral vista a zênite.
Sol se põe entre bicicleta e veleiro diante de lago.
Sol poente atravessa veleiro diante de lago.