Daniely Silva

Entre Estantes

Retrato em plano fechado de moça sorridente Daniely Silva -
Tempo de leitura: 13 minutos. Ensaios #leitura

Recentemente, por boa influência de minha amiga Beatriz Silva, ganhei o hábito de frequentar as bibliotecas públicas. Exceto as bibliotecas escolares e na graduação, o hábito nunca havia se enraizado em mim.

Pra falar a verdade, ia frequentemente à Biblioteca Mário de Andrade para descansar ou estudar, mas sem acessar o seu acervo — ótimo que quebrei essa barreira invisível!

Com o novo hábito, já percebi uma positiva mudança no meu ritmo de leitura. O exemplar de uma biblioteca é compartilhado, o que traz dois pontos relacionados ao tempo limitado em que ele está em mãos: o desestímulo à procrastinação e um estímulo à anotação; o fato de que o livro está comigo por 14 dias favorece um ritmo mais constante de leitura, porque sei que se alguém entrar na fila, não poderei renovar o empréstimo. Da mesma forma, esse livro não vai ficar comigo pra sempre, por isso, convém fichar e anotar trechos importantes para consulta futura.

Coletivamente, é um estímulo à circularidade. Durante boa parte de minha vida, li livros comprados em sebos e livrarias. É válido, mas livros são caros. Mesmo com a isenção tributária, vivemos num país onde muita gente mal tem o que comer. Mesmo eu sendo uma pessoa de classe média, com um salário atualmente confortável, não é o tempo todo que posso comprar livros, principalmente os lançamentos. O sebo é uma mão na luva para os clássicos, mas certas obras são escassas ou inexistentes nesse tipo de estabelecimento.

O fato é que o livro se consagrou como um bem de consumo da indústria cultural. Desde os tempos de Brás Cubas, personagem de Machado da Assis do Segundo Império, era bonito e socialmente desejável ter uma estante recheada. O ápice dessa ideia é a venda de livros “por metro”: não importa o título, mas o volume das lombadas que vai preencher as prateleiras de casa ou do escritório. Na pandemia, com o crescimento das reuniões e conferências virtuais, isso ganhou ainda mais força.

A biblioteca quebra esse paradigma ao oferecer um exemplar coletivo, onde o que importa é o conteúdo e nada mais. A bibiloteca não é apenas um amontoado de livros em estantes, mas um acervo classificado com base em uma curadoria. Não é qualquer coisa que pode integrá-lo, havendo uma importante cautela quanto a obras negacionistas, extremistas, revisionistas e mesmo as irrelevantes. Para além disso, lá estarão disponíveis obras que não são facilmente encontradas no mercado ou o são a um alto custo. A circularidade permite que um exemplar comprado apenas uma vez passe por várias mãos a um custo único.

Só que a isso se soma o fator da boa-fé: alguns exemplares não voltam. Quando resolvi retomar o hábito de frequentar bibliotecas, decidi ir à Seção de Consulta da Mário de Andrade a procura de Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo, do prof. Aziz Ab’Saber. Cheguei tarde para a seção, que fechava em 5 minutos. Aproveitei para visitar a seção circulante, ou seja, a que tem as obras disponíveis para empréstimos. Soube que o livro que buscava tinha quatro exemplares lá; acontece que estavam emprestados desde 2017, 2019 e 2020 — tem coisas que era melhor nem saber! Ainda me perguntaram se eu queria entrar na fila, mas, nesse cenário, achei melhor não. Que bom que agora têm o cuidado de deixar essas obras raras restritas a consultas.

O fato é que bibliotecas não têm um aparato policial para perseguir os inadimplentes. O sistema é como uma Wiki: conta-se com a colaboração de todos os que participam do sistema.

Durante o processo de centralização do sistema municipal de bibliotecas, a rede se deparou com o problema dos livros-lançamento que não voltavam, sendo o maior exemplo disso, à época, os romances infanto-juvenis da saga Harry Potter, da britânico JK Rowling. Usuários se cadastravam para fazer o empréstimo e nunca mais apareciam para devolver ou fazer qualquer nova consulta; a intenção era a de vender esses livros visados. A solução encontrada foi exigir uma carência de 6 meses para poder fazer empréstimos de lançamentos. Era um período para criar a relação de confiança.

O perigo para os acervos não é só o dos empréstimos que não voltam, tampouco o de meninos que botam livros na mochila. Em 2012, o diretor da Mário de Andrade era o dr. Luís Francisco da Silva Carvalho Filho; advogado criminalista, conseguiu dissolver a máfia que, a partir da biblioteca, criou um esquema de furtos de livros e obras de arte no próprio acervo, mas também nos cariocas Museu Nacional, Chácara do Céu e Biblioteca Nacional. O chefe da quadrilha era o titular da seção de restauro, Ricardo Pereira Machado, em conjunto com o operador dos leilões dos produtos furtados, ex-estudante de biblioteconomia da FESP-SP que havia estagiado na biblioteca, Laésio Rodrigues.

O grosso dos crimes aconteceu entre 2006 e 2008. Parte do acervo furtado foi recuperada com auxílio dos próprios compradores, que notavam algo suspeito nas obras adquiridas em leilão. Uma delas, de Debret, foi recuperada só em 2024, com participação do Polícia Metropolitana de Londres e do Polícia Federal do Reino Unido, em cooperação com a Polícia Federal brasileira.

Não é só de furtos que é feito o ataque à cultura. Em momentos de crise, ela é a primeira a cair.

Em 1994, a Unesco aprovou um documento que proclama as bibliotecas públicas como essenciais para a promoção da paz e do bem-estar espiritual da Humanidade. Desde a Antiguidade, as bibliotecas têm papel simbólico inegável, assim como ter o controle sobre acervos sempre foi estratégico. A preservação e a destruição de acervos caminham junto à manutenção do poder.

O caso mais emblemático é o da Biblioteca de Alexandria. Seu fim é comumente atribuído aos incêndios provocados por Júlio César na invasão à cidade, em 40 a.C. Soma-se a isso a lenda de que o general Marco Antônio teria, como resposta a isso, doado mais de 20 mil volumes da Biblioteca de Pergamum à de Alexandria, como prova de sua estima à sua amante Cleópatra, rainha do Egito Ptolomaico.

Posteriormente, o Califado Ortodoxo toma a cidade de Alexandria, em 641. Também se atribui a destruição aos muçulmanos. O tema é controverso, na medida em que, possivelmente, a abandono gradual tenha posto fim à biblioteca, em vez de invasões militares.

Em todo caso, não faltam exemplos na história de destruição estratégica de acervos. Na ascensão nazista, mais de 40 mil volumes do Instituto de Arte de Frankfurt foram destruídos em nome da ideologia supremacista. As inquisições, as ditaduras militares e fascistas do século XX e os Estados teocráticos agiram todos em prol da destruição de material dissidente.

Os ataques indiretos, através do corte de verba e da interferência em projetos pode ser tão prejudicial quanto uma invasão militar. A Biblioteca Màrio de Andrade nasceu sob interferência direta num dos momentos mais conturbados da nossa história. O projeto original foi desenvolvido entre 1935 e 1938, quando o acervo do município estava instalado, provisoriamente, na Rua Sete de Abril. Contudo, o golpe de Estado de 1937 fez com que o prefeito Fábio Prado fosse substituído pelo interventor-federal Prestes Maia 1. Ele paralisou o Departamento de Cultura e interveio no projeto de Jacques Pilón, eliminando a segunda torre e adicionando elementos neoclássicos à fachada, visto que o interventor era avesso ao Modernismo.

A biblioteca até hoje amarga a falta da segunda torre. Recentemente, a hermeroteca foi transferida para um anexo na Rua Dr. Bráulio Gomes, o que liberou espaço importante no complexo principal. Mas essa solução demorou. Por décadas, a Mário enfrentou uma superlotação de obras que não eram emprestadas há mais de dez anos. Por determinação de 1993 da Secretaria de Cultura, elas eram inutilizadas ao ter rasgada a folha de rosto e a página 100, mas não podiam ser descartadas devido à legislação referente a patrimônio, o que só mudou em 2003 1.

Enquanto não se resolvia o impasse de onde botar um acervo tão numeroso, surgiu, em 1979, o anexo que se tornou, na verdade, O Centro Cultural São Paulo (CCSP), encaixado num elegante talude entre a Rua Vergueiro e o vale da Avenida 23 de Maio. A mudança do projeto de um anexo de biblioteca para um centro cultural multiuso foi inspirada no Centro Pompidou de Paris. Mais uma vez, a troca de gestão mudou tudo: com a saída de Olavo Setúbal (Arena, 1974-78) e a entrada de Reynaldo de Barros (Arena/PDS, 1979-82), o novo Secretário de Cultura, Mário Chamie, encantou-se pelo equipamento francês e alterou o projeto já contratado 1.

Vista para edifício horizontal entre avenida movimentada, em primeiro plano, e edifícios verticais, ao fundo.

O CCSP é o melhor exemplo de que uma biblioteca e um centro cultural são coisas distintas. No projeto, não foi previsto isolamento acústico e, dado as características permeáveis do espaço, é inevitável que o som de peças de teatro, performances e apresentações musicais chegue à biblioteca, quando o silêncio é a principal singularidade desse tipo de lugar.

De um tempo pra cá, a Biblioteca Mário de Andrade também tenta se consolidar como um centro cultural, recebendo exposições, cinema, performances e teatro. Iniciativas que dêem fôlego ao espaço são bem-vindas, desde que não atrapalhem a finalidade primordial daquele espaço: a leitura — e, volta e meia, exposições e eventos tomam o lugar dos espaços de estudo.

Volto a dizer que biblioteca não é um mero amontoado de estantes e livros empoeirados. Ela é um espaço de cultivo ao silêncio e à reflexão, o que se torna ainda mais importante num mundo tomado pela hiper-digitalização e a pirataria.

Habitamos um mundo barulhento, poluído visualmente e com superestímulos. A biblioteca compete diretamente com vídeos curtos, sequenciais e apelativos, sob uma curadoria de robôs hipereficientes. Um espaço silencioso, reflexivo, com curadoria humana profissional, lista de recomendações e disponibilidade de conteúdo completo e contextualizado é um privilégio. Proteger as bibliotecas é garantir um repositório de saber para as próximas gerações. Elas não se cuidam sozinhas e, se deixadas à própria sorte, degradam-se facilmente pela ação do tempo e dos ladrões. Tirar a vocação essencial é tão perigoso quanto deixá-las desprotegidas dos perigos imediatos.

Descaracterizar bibliotecas pode parecer justificável por atrair mais público, contudo, boa parte desse público será passageiro e não vai se converter em leitor. Bibliotecas não são equipamentos baratos, por isso, há o constante pânico da baixa frequência, o que costuma ser prerrogativa para gestões ultraliberais cortarem seus recursos e seu quadro.

Construir bibliotecas do zero parece não se justificar aos olhos da eficiência de recursos de gestores que não olham para bairros afastados. Nesse caso, surgem alternativas. Em São Paulo, algumas delas são os chamados serviços de extensão. São eles os bosques de leitura, integrados às áreas verdes municipais, os pontos de leitura, inseridos dentro de outros espaços culturais, e os ônibus-bibliotecas 2 3. Os dois últimos surgiram em 2006, na gestão de José Serra (PSDB), e em 1990, com Luíza Erundina (PT). Ambos têm o princípio de levar a leitura a um baixo custo a regiões periféricas que não sejam servidas por bibliotecas convencionais. Os acervos são modestos, de até 3000 volumes, mas a eficácia é comprovada. No caso dos ônibus-biblioteca, entre 2009 e 2012, o número de empréstimos chegou a superar os 3 milhões das bibliotecas municipais 4. Mesmo com a eficiência e o baixo custo, o projeto tem sido gradualmente abandonado, ao ponto que somente uma Kombi ficou à disposição do serviço. (atualização: aos 14 de novembro deste ano, o portal da prefeitura informa que o serviço está suspenso por tempo indeterminado.)

A troca de livros também é uma iniciativa que dá frutos a um custo próximo a zero: basta uma estante, um espaço movimentado e a disposição coletiva de deixar livros conforme manda o coração e pegá-los quando se interessar. Os terminais urbanos da SPtrans têm o programa Livro na Faixa, enquanto o Metrô e a CPTM costumam aderir à campanha Circule um Livro. Nem sempre vamos encontrar um livro bom nessas trocas, mas às vezes a sorte aparece. Foi numa dessas estantes, no Terminal Pirituba, que tive a oportunidade de conhecer o romance Leite Derramado, de Chico Buarque — quando nem sabia que ele escrevia! Depois, devolvi-o no mesmo lugar.

Para além dessas iniciativas de baixo custo, há também o CEU. O Centro Educacional Unificado foi criado em 2001, na gestão de Marta Suplicy (PT), marcada por um olhar às perifeirias. À época, uma estrutura daquele porte foi apontada como um elefante-branco por críticos, ao que a prefeita se defendeu ao dizer que o filho de um trabalhador periférico também merece o acesso a uma cultura erudita e o quanto isso pode fazer a diferença no seu futuro.

Além das bibliotecas, os CEUs são equipados com salas de cinema, teatros, piscinas, centros esportivos e, mais recentemente, cursos universitários, através do UniCEU, criado na gestão de Fernando Haddad (PT). Os primeiros centros tiveram a participação do professor Alexandre Delijaicov, conceituado urbanista da FAU-USP com participação em projetos de porte como o Hidroanel Metropolitano. Não demorou para que a ideia inspirasse outros municípios a fazer a mesmo.

São 53 bibliotecas no município, mas muitos dos distritos não têm nenhuma. É o caso do meu, Anhangüera, na Subprefeitura de Perus, onde a única biblioteca é a do CEU Parque Anhangüera. Ao visitá-la pela primeira vez, pude ver de perto o sucateamento. Alguns livros constantes como disponíveis não estavam lá, embora nunca tenham sido emprestados. A equipe de sete funcionários estava reduzida a dois, resultando numa sobrecarga. Soube que o prefeito não deve abrir mais concursos públicos para bibliotecários, tendo em vista o processo de entrega dos CEUs às Organizações da Sociedade Civil (OSC) e Organizações Sociais (OS), o que já aconteceu a quase todos os postos de saúde do município.

A geografia da leitura na cidade é mais um retrato das desigualdades socioespaciais. Sob a justificativa de que não há demanda por equipamentos culturais nas perifeirias, poucos estão instalados nelas. Contudo, a baixa demanda se explica pela falta de acessos e incentivos desde a base e, portanto, manter essa lógica perpetua a má distribuição desses espaços. Não tiro o papel das bibliotecas instaladas no Centro Expandido, porque é lá onde circulam diariamente os moradores das periferias. Mas certos equipamentos também precisam estar presentes perto de casa, não só pela comodidade, mas pela referência que um espaço desses se torna. Para se tornar referência, elas precisam estar bem cuidadas, bem localizadas e ter um ambiente não só silencioso, mas também acolhedor. Por volta de 2011, bibliotecas de referência como a Mário Schenberg, na Lapa, e a própria Mário de Andrade passaram por reestruturação nos seus espaços, o que valorizou a luz natural e tornou ao fachadas permeáveis aos olhos da rua. Assim, também perderam a aparência antiquada.

Podemos perceber muitas informação sobre as bibliotecas numa simples visita, mas os bastidores são vastos. Este período em que voltei a frequentá-las tem sido muito enriquecedor, não só pelas leituras que me proporciona, mas também pelas pesquisas e curiosidades que estimula. São muitas experiências posséveis nesses espaços que não estão esquecidos.

Escrito aos 29 de outubro de 2025.


Sugestões de leituras complementares:


  1. CACIL, Carlos Augusto. A implantação do sistema municipal de bibliotecas de São Paulo e a renovação da Biblioteca Mário de Andrade. Revista BBM,, São Paulo, n. 2, pp. 166-183, jan./jun. 2020. Disponível em: < https://revistas.usp.br/revistabbm/article/view/175128?gathStatIcon=true >. Acesso: 29 out. 2025. ↩︎ ↩︎ ↩︎

  2. Sistema Municipal de Bibliotecas. Prefeitura de São Paulo. Disponível em: < https://prefeitura.sp.gov.br/web/cultura/w/bibliotecas/smb/1197 >. Acesso: 14 out. 2025. ↩︎

  3. Ônibus-bibliotecas. Prefeitura de São Paulo. < https://prefeitura.sp.gov.br/web/cultura/bibliotecas/onibus_biblioteca/↩︎

  4. FÉRIA, Larissa; CAMACHO, Rita. Ônibus-biblioteca se reduz a Kombi em SP. Folha de São Paulo, São Paulo: 22 ago. 2002. Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2208200224.htm >. Acesso: 14 nov. 2025. ↩︎